Estrelado por Russell Crowe, Noé não empolga por apresentar ritmo lento
Contrastes de ambientes e de acabamento de imagens ficam patentes no filme que coloca o protagonista em intrigante contato com o dito Criador
Sabe quando as credenciais de um artista se sobrepõem ao resultado do que ele apresenta? Sabe mesmo? Pois bem, então Noé — na verdade, nunca representado com a devida atenção no cinema — é o tipo de filme que você já viu. Lembrado pela pontuação radical de filmes como Cisne negro e Réquiem para um sonho, Darren Aronovsky chega a um extremo, ofertando duplo combo, num mesmo filme: primeiro, uma aventura (com direito a guardiões feitos de pedra que clamam pelo apelido de Transformers) e, em seguida, vem o compromisso com a cabal contemplação, num marasmo de proporções bíblicas.
No fundo, Noé traz uma trama de reconciliação. Contrastes de ambientes e de acabamento de imagens ficam patentes no filme que coloca o protagonista em intrigante contato com o dito Criador. Verdade que figuram elementos como compaixão, sonhos proféticos recorrentes e exuberância da natureza (momentânea, já que os animais ficam inanimados, por hibernação).
Mas o ritmo do filme fica aquém. Dono de um senso bélico (e comprometido na criação de armamentos), Tubal Caim (Ray Winstone) surpreende ao dar as caras, num contraste à retidão da linhagem de Noé (Russell Crowe) — leia-se, os varões Sem (Douglas Booth), Cam (Logan Lerman, o Percy Jackson do cinema) e Jafé (Leo Carroll).
Na melhor corrente do goste ou não suporte, Noé se vale de roteiro do diretor, apoiado por Ari Handel (do intenso A fonte da vida). Pouco complacente, o personagem central de Russell Crowe deixa aparente a torrencial convicção do mesmo intérprete de Javert (em Os miseráveis) e de Maximus (Gladiador). Com um fardo incalculável (da construção da descomunal arca aos embates domésticos, na criação dos filhos), Noé tem uma mudança exageradamente abrupta, ao fim da jornada em que pesam até traços de vingança. Estilizado, o dilúvio impressiona, mas representa menos do que um breve afresco em que Aronofsky expõe as almas impedidas, aos gritos, de entrarem na barca.
Três perguntas para Russell Crowe
Noé proporcionou vários reencontros do astro Russell Crowe com atores com os quais partilhou outro set. Logan Lerman, por exemplo, surpreendeu o ator, já adulto em relação ao faroeste Os indomáveis (2007). Depois de 22 anos, a parceria com Anthony Hopkins, que interpreta Matusalém, se repete. Caso especial foi o reencontro com Jennifer Connelly: “Já havíamos criado uma intimidade, em Uma mente brilhante (2001)”.
Como foi o encontro com o papa?
Dado o grau de controvérsia atrelado ao filme, ao longo de um ano, o fato de o papa nos receber foi um gesto de gentileza e de coerência. Foi um grande privilégio ter sido convidado para o encontro.
O que o fator religioso agregou ao personagem?
Quando comecei o processo do filme, não tinha o atual conhecimento sobre a figura do personagem. Tinha até uma percepção limitada. As pessoas normalmente levam a imagem criada pelos livros infantis. Não penetrei na perspectiva religiosa, de imediato, mas nos aspectos sombrios. Depois é que vieram os traços religiosos. Foram quase 40 dias sob chuva do dilúvio bíblico. Essa experiência me transportava para um nível transcendental, ao cair das primeiras gotas, mas aquilo tomava a proporção de fogos de artifício e voltava à ação.
Qual a sua conexão com animais?
O combo é muito raro: você tem Darren Aronofsky (o diretor), que é vegetariano, e você tem a mim — alguém que cria gado (risos). Vejo que tendemos a não tratar os animais que se transformarão na nossa comida com o devido respeito. A carne livre de adrenalina é muito melhor. No exame da maneira com a qual tratamos os animais temos certo reflexo do andamento da nossa sociedade.