Em entrevista, cozinheiro André Magalhães fala sobre o preparação de bacalhau
Em uma rápida passagem por Brasília, o chef português experimentou o famoso bacalhau de Francisco Ansiliero, do restaurante Dom Francisco

O bacalhau equivale aos portugueses o que a feijoada simboliza para os brasileiros. O peixe é amplamente apreciado em terras lusitanas — Portugal é o país que mais consome a iguaria no mundo. André Magalhães, cozinheiro, crítico gastronômico e cronista português, é especialista no preparo do peixe e em seus acompanhamentos. Para a sorte de seus conterrâneos, ele tem um restaurante em Lisboa, Taberna da Rua das Flores, onde põe em prática o resultado do seu trabalho de pesquisa (como professor acadêmico) e de suas viagens.
“O bacalhau compõe todo um universo gastronômico, ou seja, dentro do bacalhau temos picanha, cupim e filé mignon”, explica. Em uma rápida passagem por Brasília, o chef português experimentou o famoso bacalhau de Francisco Ansiliero, do restaurante Dom Francisco (em junho, o prato foi considerado o prato mais tradicional da cidade pelos leitores e chefs do Divirta-se Mais).
“Costumamos brincar que temos mais de 365 formas de preparo, uma para cada dia do ano”, diverte-se Magalhães. A respeito do bacalhau preparado em Brasília, o português se rendeu a receita de Francisco. “Ele sabe tratar bem um bacalhau. Comi assado, na grelha e estava extraordinário”, elogia. Na casa, o bacalhau desfiado ao forno custa R$ 87 e serve duas pessoas.
Segundo André Magalhães, a parte mais apreciada do peixe é o lombo, mais alta e macia. Mas, do bacalhau se extrai tudo, da cabeça ao rabo: inclusive a língua e as bochechas, consideradas carnes nobres e caras. De acordo com o chef, em Portugal, o bacalhau é consumido cozido, acompanhado de batatas e grãos, à Brás ou à Gomes de Sá.
Frequentemente, o peixe é temperado apenas com azeite. De acordo com André, não é necessário o uso de muitas especiarias. Bastam alho, coentro, salsa e uma erva que não tenha sabor muito forte. “É mais que suficiente para condimentá-lo”, completa.
Apesar de todo o sabor marcante, o bacalhau tem fama de ser um peixe de difícil preparo. A seguir, o chef português dá dicas importantes para quem pretende cozinhar a iguaria. Aproveite que o período favorece a compra de bacalhau e se delicie com o sabor marcante deste peixe.
Confira a entrevista com o chef André Magalhães
O bacalhau equivale aos portugueses o que a picanha simboliza para os brasileiros?
Acho que podemos ir muito mais longe que isso. Este peixe compõe todo um universo gastronômico, ou seja, dentro do bacalhau temos picanha, cupim e filé mignon. Temos o bacalhau tão entranhado em nossos hábitos alimentares. São vários tamanhos e preços, e temos até bacalhaus especiais, com mais de oito quilos. Mas, quando eles são salgados, perdem cerca de 40% do seu peso. O preço do bacalhau abaixa em função do tamanho, mas mesmo os pequenos são cortados em postas e separamos diferentes partes para diferentes tipos de uso culinário.
Quais seriam essas partes e seus respectivos usos?
Dessas receitas, qual é a mais tradicional?
É difícil dizer porque costumamos brincar que temos mais de 365 formas de preparo, uma para dia do ano. Mas, há três ou quatro que são mais usadas: o bacalhau à Brás, à Gomes de Sá e o cozido com batatas e grãos, este é quase como a feijoada, comemos uma vez por semana. Todo restaurante ou boteco tem. É um prato popular. Esses são os principais, mas cada região e família tem suas receitas. Outra receita muito famosa é o bacalhau com natas, gratinado com mel e batatas. Parece uma lasanha. Temos realmente muitas receitas.
Como você o utiliza?
Temos uma taberna e procuramos a essência de pequenos restaurantes de antigamente. Para mostrar justamente que as pessoas que querem só o filé mignon há muito desperdício de comida. A gente faz o contrário, usamos todas as partes para valorizar o bacalhau, é possível fazer pratos incríveis com partes menos nobres. Usamos muito das badanas, em saladas por exemplo, e outras partes mais pobres, digamos assim. Aproveito até o rabo para fazer um sal com ele. Temos muitos usos.
Qual um erro comum no preparo de bacalhau?
Um dos grandes erros é cozinhar demais, deixar muito tempo na água fervente. Normalmente as pessoas jogam a água em que ele foi cozido fora e é justamente ali que está o sabor. Dá para aproveitar o caldo, colocando na geladeira e usando para fazer molhos.
Quais as características do bacalhau?
Ele é um peixe que tem gordura, mas o fato de ser salgado tira essa gordura, ela é praticamente transformada nesse processo de cura. Isso faz com que ele se torne muito saudável. São gorduras boas! Um bacalhau fresco causa quase a mesma sensação do salmão, mas só comemos ele curado, então essa sensação fica diferente.
Como ele é transformado de fresco para seco?
Isso é feito em escala industrial. Os grandes produtores de bacalhau são a Noruega e a Islândia, e Portugal é o maior consumidor do mundo. Tem alguns pescadores portugueses que pescam na região nórdica também. No processo de cura o bacalhau é aberto ao meio e é posta em uma salmora. Fica assim até ir aos postos de secagem. Ele é coberto com sal grosso e posto em uma câmara de secagem. Antigamente, isso era feito no sol, mas levava muito tempo e requer muita mão de obra. Hoje tudo é feito industrialmente. Os portugueses tem uma cura particular, o nosso é mais seco e com um teor de sal um pouco acima do que existe nos outros países. Geralmente é o mesmo vendido aqui no Brasil.
O bacalhau tem um teor de sal muito elevado. Como deve ser temperado para não ficar muito salgado?
É muito importante a dessalga do bacalhau. Deixamos ele de molho por 24 horas em água fria, para ele não fermentar e estragar. O ideal é manter na geladeira. Sempre com a pele virada para cima, porque se ele ficar para baixo retém o sal do peixe, ela é impermeável. Com a pele para cima, o sal fica na água e não no peixe. É preciso mudar a água várias vezes. Quanto mais mudarmos mais rápido ele dessalga, pelo menos 4 vezes ela precisa ser trocada. Depois nós cozinhamos ele. Convém não cozinhar muito, para não perder o colágeno e a gordura natural dele. Não é preciso uma quantidade muito grande de água. A melhor maneira de faze-lo é confitado, mergulhando em azeite em forno em torno de 80ºC por cerca de 20 minutos. Fica delicioso! Também podemos assá-lo no forno, sempre tampado para a água dele não evaporar e ele não ficar ressecado. Dá para fazer assado na brasa, como se fosse um churrasco, tomando cuidado para não deixar muito tempo e ele perder os sulcos. Tem mil maneiras de preparar, e no final, sempre temperamos com azeite. O bacalhau não precisa de muitas especiarias, só de alho, coentro, salsa e uma erva que não tenha sabor muito forte. É mais que suficiente para condimentá-lo.
O que achou do bacalhau feito no Brasil?
Comi o bacalhau do Francisco, que é um grande cozinheiro e aprendeu a cozinhar com cozinheiros portugueses de Trás-os-Montes, há muito tempo. Ele sabe tratar bem um bacalhau. Comi assado, na grelha e estava extraordinário.
Qual o melhor acompanhamento para ele?
Dizemos que o ideal é só batata cozida com pele. Na hora de servir, retire a pele e sirva com azeite. É a maneira mais natural. Mas fica muito bem com legumes servidos no vapor, como brócolis, cenoura, couve portuguesa. E também com grão de bico cozido. O arroz também é bom, podemos fazer um arroz caldoso, com muito molho, e servir com tomate e bacalhau.
E para beber?
Em Portugal, geralmente servimos ele acompanhado de vinho tinto. É a exceção da regra que peixes combinam melhor com vinho branco. O bacalhau tem um sabor forte, como os embutidos, e ele aguenta um tinto. Eu, pessoalmente, prefiro com um vinho branco encorpado com uns 4 anos, é uma ótima maneira. Aqui no Brasil há espumantes de muita qualidade e boa acidez que funcionam muito bem com alguns pratos de bacalhau.