Crônica: A crise de cada um
Conheça a história de Tiãozinho e Cezinha, músicos que buscavam um local para tocar em Brasília
Já era perto da meia-noite de terça-feira quando tocou o telefone. O mostrador tinha o nome do Tiãozinho, o grande músico, que hoje anda pelo mundo — um dia na Europa, outro em Cuba ou nos Estados Unidos. Virou um cidadão do mundo, por assim dizer. Nesse dia estava em Brasília mesmo e, saindo do restaurante, fez um apelo:
— rapaz, eu estou aqui com o Cezinha e a gente quer tocar umas coisinhas em algum lugar. Onde é que está acontecendo uma roda de músicos hoje?
O Cezinha em questão é o sanfoneiro tão invejado pelos homens, tanto pela estampa quanto pelo talento, e adorado pelas mulheres pelos mesmos motivos. Ele estava na cidade para uma apresentação no dia seguinte, jantou com Tiãozinho, só falaram de música, e queria tocar. Não deu certo; não havia um lugar sequer em que eles pudessem dar uma canja.
Se fosse na quarta-feira, poderiam ir ao Clube dos Médicos e entrar na roda da Turma do Gambá, mas ainda assim tinha que ser mais cedo, pois o inapelável fato é que a cidade está indo dormir mais cedo. E não é por causa do frio das madrugadas secas; é porque até mesmos os mais tradicionais bares e restaurantes notívagos estão sentindo o peso da crise.
E não é apenas uma crise financeira. Parece mais um desânimo generalizado, como aquela névoa seca que cobre a cidade no auge da seca, e que está afetando as pessoas de uma forma estranha. Há poucos dias, uma velha confraria rachou por causa de posições políticas conflitantes. Os velhos amigos sempre conversaram sobre política, cada um com sua posição, sempre firme, mas no final sempre se entendiam. Agora não se sentam mais à mesma mesa, embora frequentem o mesmo bar.
Brasília sobreviveu a tempos muito mais duros sem perder a camaradagem. É como diz o boêmio-empresário Jael Silva: é preciso recuperar a alegria e o lazer da cidade, impedir que nos transformem em mortos-vivos, cidadãos sem alma. Mas para isso é preciso flexibilizar as relações, conversar mais, procurar entender as posições alheias com mais respeito.
Mas a crise é também financeira e nem o frango escapa da falta de grana. Dizendo melhor: o frango escapa; o prejuízo é do dono da penosa. Dona Divina vende e abate aves na Feira Permanente do Núcleo Bandeirante há 35 anos; até meados do ano passado, chegava a negociar até 250 frangos por semana. Hoje ela comemora quando vende 70. Faisão, então, só por encomenda — quase não tem saído, assim como gansos, marrecos e pombos.
Diz ela que piorou depois da eleição. E que está notando que as pessoas estão muito preocupadas e desanimadas. Alguns metros à frente, na área de bares e restaurantes, o movimento continua grande e barulhento. “Ah, mas já foi muito maior, tinha mais riso”, disse ela, enquanto ensacava o sangue de duas galinhas-caipiras.
A nota triste é que Tiãozinho e Cezinha tiveram que se recolher mais cedo; não encontraram lugar para mostrar sua música. Certamente teriam deixado Brasília mais alegre naquela madrugada.