Em crônica da semana Paulo Pestana fala sobre a crise
Usando o personagem Corisco, Pestana mostra como a crise chega para cada pessoa
Paulo Pestana
Publicação:04/09/2015 06:00
A crise na soleira
Corisco não acredita em crise. Não compra tomate e cebola, não lê jornal, na tevê se limita ao futebol e, enquanto estiver recebendo seis diárias por semana pelo trabalho braçal, acredita que está tudo dentro da normalidade. Mas mesmo a inquebrantável fé do Corisco trincou quando recebeu a notícia, enquanto filava uma cerveja:
— a fábrica da skol no Gama fechou.
Quem trouxe a novidade para o recinto foi Mário, um rematado socancra, que fala só pela extremidade direita da boca e olhando para baixo. Não é um sujeito confiável, mas a informação era correta. Morador do Gama, ele vinha guardando a revelação há alguns meses, a espera da melhor hora, como se fosse possível que ela chegasse.
O fato é o que o fechamento da fábrica da Ambev, que há quase 40 anos produzia cerveja e chope para toda a região, fez cair a ficha do Corisco, que já pensa em trocar o adesivo na bicicleta. Ele está achando que pode ser afetado pela tal da crise.
— A situação tá muito feia —disse ele, emulando a expressão facial catastrófica de um comentarista econômico para, em seguida, perguntar: “Você acha que vai faltar cerveja, moço”?
Ninguém respondeu ao pobre do Corisco, até porque é óbvio que nem a pior crise do mundo seria capaz de impedir o fluxo das garrafas. Mas a fábrica do Gama produzia 400 mil hectolitros mensais e o fechamento da planta deixa centenas de pessoas sem emprego. O governo, como Corisco, acha que está tudo bem.
Só que à mesa surgiu uma preocupação adicional: quer dizer que estamos bebendo chope de caminhão, bem sacudido, malhado, judiado? No ambiente, é preciso esclarecer, cada um que está na mesa da diretoria se julga mais especialista que o outro em matéria de chope; mas a pergunta procede.
O chope, como o vinho, é uma bebida viva; a ausência da pasteurização mantém as bactérias vivas e o sabor pode ser alterado por qualquer bobagem, forçando o azedume, que vem a ser o sabor avinagrado.
Compare: a cerveja pode ser consumida em até seis meses ou até mais, se for bem armazenada. Ainda mais perecível que o vinho, o chope deve ser sorvido, no máximo, uma semana depois de fabricado, e o barril não pode sofrer abalos, o que significa que não deve cruzar grandes distâncias.
Eis o problema: o chope que está sendo servido nas tulipas e calderetas brasilienses vem de Anápolis (150km) ou Uberlândia (400km). O ideal, dizem os especialistas, é que a fábrica não fique a mais de 50 quilômetros do local de consumo. A partir daí, cada quilômetro rodado, cada sacudida do caminhão, é risco para o paladar. E quando o prazer diminui, a crise aumenta.
E ela está na soleira. Dia desses, numa venda que ainda aceita pendura, Milton proseava com o dono e perguntou como estavam os negócios. O proprietário suspirou, pigarreou, franziu o cenho e disse:
A coisa anda tão feia que até nem quem não costuma pagar não está comprando.
“O chope, como o vinho, é uma bebida viva; a ausência da pasteurização mantém as bactérias vivas e o sabor pode ser alterado por qualquer bobagem, forçando o azedume, que vem a ser o sabor avinagrado”
Corisco não acredita em crise. Não compra tomate e cebola, não lê jornal, na tevê se limita ao futebol e, enquanto estiver recebendo seis diárias por semana pelo trabalho braçal, acredita que está tudo dentro da normalidade. Mas mesmo a inquebrantável fé do Corisco trincou quando recebeu a notícia, enquanto filava uma cerveja:
— a fábrica da skol no Gama fechou.
Quem trouxe a novidade para o recinto foi Mário, um rematado socancra, que fala só pela extremidade direita da boca e olhando para baixo. Não é um sujeito confiável, mas a informação era correta. Morador do Gama, ele vinha guardando a revelação há alguns meses, a espera da melhor hora, como se fosse possível que ela chegasse.
O fato é o que o fechamento da fábrica da Ambev, que há quase 40 anos produzia cerveja e chope para toda a região, fez cair a ficha do Corisco, que já pensa em trocar o adesivo na bicicleta. Ele está achando que pode ser afetado pela tal da crise.
— A situação tá muito feia —disse ele, emulando a expressão facial catastrófica de um comentarista econômico para, em seguida, perguntar: “Você acha que vai faltar cerveja, moço”?
Ninguém respondeu ao pobre do Corisco, até porque é óbvio que nem a pior crise do mundo seria capaz de impedir o fluxo das garrafas. Mas a fábrica do Gama produzia 400 mil hectolitros mensais e o fechamento da planta deixa centenas de pessoas sem emprego. O governo, como Corisco, acha que está tudo bem.
Só que à mesa surgiu uma preocupação adicional: quer dizer que estamos bebendo chope de caminhão, bem sacudido, malhado, judiado? No ambiente, é preciso esclarecer, cada um que está na mesa da diretoria se julga mais especialista que o outro em matéria de chope; mas a pergunta procede.
O chope, como o vinho, é uma bebida viva; a ausência da pasteurização mantém as bactérias vivas e o sabor pode ser alterado por qualquer bobagem, forçando o azedume, que vem a ser o sabor avinagrado.
Compare: a cerveja pode ser consumida em até seis meses ou até mais, se for bem armazenada. Ainda mais perecível que o vinho, o chope deve ser sorvido, no máximo, uma semana depois de fabricado, e o barril não pode sofrer abalos, o que significa que não deve cruzar grandes distâncias.
Eis o problema: o chope que está sendo servido nas tulipas e calderetas brasilienses vem de Anápolis (150km) ou Uberlândia (400km). O ideal, dizem os especialistas, é que a fábrica não fique a mais de 50 quilômetros do local de consumo. A partir daí, cada quilômetro rodado, cada sacudida do caminhão, é risco para o paladar. E quando o prazer diminui, a crise aumenta.
E ela está na soleira. Dia desses, numa venda que ainda aceita pendura, Milton proseava com o dono e perguntou como estavam os negócios. O proprietário suspirou, pigarreou, franziu o cenho e disse:
A coisa anda tão feia que até nem quem não costuma pagar não está comprando.
“O chope, como o vinho, é uma bebida viva; a ausência da pasteurização mantém as bactérias vivas e o sabor pode ser alterado por qualquer bobagem, forçando o azedume, que vem a ser o sabor avinagrado”