Crônica da semana: Paulo Pestana fala sobre as desavenças de botequim
Paulo Pestana
Publicação:27/11/2015 06:53
Tem dia que a arenga começa mais cedo. A primeira cerveja ainda estava suando pela garrafa quando Alcebiades chegou — não se impressionem pelo nome; é um jovem, mal passado dos 30, pequeno empresário, palmeirense. Mais não sei. Pouco sabemos dos nossos íntimos e inseparáveis companheiros de copo. E Alcebiades já trouxe a polêmica na ponta da língua, quando se virou para alguém na mesa e avisou:
— Você está na minha lista negra.
O Faixa foi o primeiro a se levantar, indignado com o uso da expressão. É também um jovem, advogado, acaba de ser eleito conselheiro da OAB e comemorava — de novo, mais não sei. Usando aquela lábia jurisconsulta, a retórica enfática das cortes, despejou argumentação, de onde pinço o fundamental:
— É o Mês na Consciência Negra e você me vem com um absurdo desses!
Mais uma rodada arruinada, pensei imediatamente. Vai começar aquela discussão sobre o que é politicamente correto, aquela censura verbal que não contribui para dirimir preconceitos e ainda enche a paciência da gente. Mas o estrago estava feito e, como diz Luís Jorge quando recebe um caboclo baiano, “segue o baba”. Para piorar a situação, por alguma armadilha do destino, não havia nenhum afrodescendente à mesa — exceto Zeca que, na leitura do dr. Irineu, tem “pouca tinta”.
O pior do politicamente correto são as explicações. Não adiantou nada dizer que o negro das listas de perseguição não tem nada a ver com raça; poderia ser chamada de lista vermelha, porque o termo foi criado para a caça macartista aos comunistas, nos Estados Unidos dos anos 1950. O mais famoso integrante deste rol, aliás, foi Dalton Trumbo, roteirista do filme Spartacus, que não tinha um pigmento que não fosse caucasiano.
No auge da inócua discussão, um gaiato de outra mesa se intrometeu: “A coisa tá preta aí, hem?”. O assunto da semana era o Eduardo Cunha, talvez o terror em Paris ou, quem sabe, o fim da revista Playboy antes mesmo de parar de publicar moças peladas em suas páginas — renderiam conversa, mas sem polêmica (ninguém se levantaria em favor de Cunha e dos jihadistas, todos relacionariam suas coelhinhas favoritas). Mas, é artigo do estatuto do bom boteco: não se resiste a uma contenda.
Ninguém sabia de onde vinha a expressão coisa preta — exceto que ela tinha servido a uma piada racista e chula que envolvia o Pelé e a Xuxa. Mas eu me lembro de uma tia, cujo nome não pode mais ser pronunciado em família, dizer, numa situação grave, “a coisa está preta, pintadinha de branco”. Nada a ver com cor da pele de ninguém; a ligação é com o luto, herança lusitana.
O Faixa não se conformava com a demolição das frases feitas. E começou a falar mais seriamente sobre a sociedade racista, citando o exemplo da própria formação, que tem permitido aos negros bons cargos públicos, conquistados por concurso, mas pouco acesso como profissionais liberais. Nós nos calamos. Pelo argumento e porque queixos caíram; naquele momento passava uma “mulher para 400 talheres”, na definição de Stanislaw Ponte Preta. Negra.