Crônica da semana aborda a liberdade e a aposentadoria
Paulo Pestana
Publicação:20/05/2016 07:30
Tudo para fazer
Os dias que antecederam a aposentadoria foram tensos. Algumas amigas diziam que ela teria que superar o luto que o fim das obrigações diárias trazia; outras eram mais otimistas: relaxa, vai ser ótimo, diziam. Veio dia do chamegão final, da assinatura que alteraria uma rotina de mais de 30 anos. Livre.
O que fazer com aquelas oito ou mais horas diárias dedicadas ao serviço? De repente o dia ficou comprido. A filha caçula já não depende dela, o marido continua dando expediente; o mundo, enfim, continuava girando como sempre girou. Mas ela começou a ver tudo em câmera lenta.
No início, foi arrumar a casa do jeito que sempre quis e não do modo com que a diarista deixava, mas, mesmo com o trabalhão, acabou logo. Outro sonho era fazer exercícios físicos com regularidade, o que foi resolvido na aula de remo, com a vantagem adicional de ser no Lago Paranoá, que ela ajudou a cuidar e namorava a distância desde sempre. Mas ainda sobravam horas.
A paixão pela cerveja também tinha que ser observada com cuidado para não virar problema. E essas pequenas novas angústias foram se acumulando e trazidas à mesa das quintas-feiras, quando as amigas religiosamente se encontram para... enfim, não temos nada com isso, elas podem falar do que bem entendem.
Mas havia mais uma camada de segredo na jovem aposentada. Ela gosta de escrever. E sabe escrever. Começou a fazer pequenas crônicas; impressões sobre o que viveu aliada às sensações recentes em relatos concisos e pertinentes. As amigas deram força, gostavam sinceramente do que era apresentado, comentavam e a incentivavam.
É a cartilha dos aposentados. É preciso saber o que fazer quando as obrigações com o trabalho chegam ao fim; afinal, aposentado não é inútil. É preciso cuidar da vida social, olhar mais pela saúde, descobrir hobbies ou ocupações, usar o tempo com sabedoria, qualquer coisa para evitar o tédio, a depressão ou a sensação de ficar observando o abismo da existência, ou pior, nietzscheanamente, sendo observado pelo abismo.
O difícil é se livrar do uniforme de aposentado — pijamas e pantufas —, embora seja importante nos primeiros dias para, digamos, quebrar paradigmas. Amigo recém-aposentado começou a fazer uma lista de mil coisas que ele quer fazer agora; ainda não chegou na vigésima sexta e, em vez de aumentar, está diminuindo. Mas está feliz com a ocupação e, para nossa irritação, não fala em outra coisa.