Em crônica da semana Paulo Pestana fala sobre a magia dos instrumentos musicais
Paulo Pestana
Publicação:01/07/2016 06:14
Depois de animada roda de choro numa chácara próxima, o pessoal sentou-se para dois dedos de prosa; foi rápido, mas tempo o suficiente para um amigo do alheio surrupiar a clarineta em si bemol usado por Walcyr Tavares. Procurou-se em vão.
O instrumento havia sido importado há pouco, graças a uma boa alma que o trouxe na bagagem, escondido para escapar dos homens da alfândega. Só quem viveu naqueles anos pré-globalizados sabe como era difícil ter um instrumento de qualidade; os nacionais eram de dar dó — não a nota musical, mas o sinônimo de lástima, pena, compaixão.
O jeito foi voltar a tocar com a velha clarineta em dó — desta vez a nota propriamente dita. O som continuou bonito, mas, sem dúvida, era mais triste. Melancólico como o choro Lamento, de Pixinguinha, com dores adicionais. Não havia o recurso das 21 chaves, era preciso adaptar acordes e a lembrança do instrumento machucava.
Há 57 anos em Brasília, Walcyr veio trabalhar na presidência da República. Ocupou cargos importantes e foi “nomeado” embaixador do choro pelo então governador Elmo Serejo, impressionado com a perseverança de seu assessor de gabinete em conseguir um terreno para fundar o Clube do Choro. Tanto fez que conseguiu.
Foi eleito vice-presidente do clube, mas, com a morte do citarista Avena de Castro, seis meses depois, assumiu a presidência. O choro não tinha o reconhecimento de hoje, era música em extinção; para atrair público apelava-se para o paladar e servia-se um sarapatel.
Walcyr é, como se vê, um obstinado. Em casa, manteve a nota de compra com os dados da clarineta; mais que uma lembrança — carregava a esperança de um dia reencontrar o instrumento.
Meses depois alguém lhe disse ter ficado maravilhado com uma clarineta em si bemol tocada pelo maestro Manoel de Carvalho, professor da Escola de Música e fundador da Brasília Popular Orquestra. A orelha coçou. Com o número de série de fabricação nas mãos, ligou para o maestro, seu amigo. O número batia. Restava esclarecer o resto do mistério.
O maestro Carvalho, homem direito, havia conseguido o instrumento numa troca com um aluno iniciante. A clarineta foi esquecida no táxi do pai do menino que, sem encontrar o dono, deu para o filho, que começou a ter aulas.
Descoberta a confusão, Walcyr comprou uma nova clarineta, trocou com o aluno e devolveu o instrumento do maestro, recuperando a querida clarineta em si bemol. Do ladrão esquecido, nunca se soube, desfruta a impunidade.
A clarineta continua com ele, mas está abandonada. Ocupa um quarto da casa com outras preciosidades: uma flauta Birollo que pertenceu a Pixinguinha, o último cavaquinho de Waldir Azevedo, um sax de Abel Ferreira, pandeiros, tarraxas e platinelas de Pernambuco do Pandeiro.
Atualmente Walcyr Tavares prefere tocar um prosaico afoxé de fabricação própria na roda do Grao, no Lago Norte. Dia 13 de agosto ele fará 88 anos e está pensando se, para comemorar, não volta a soprar sua clarineta em si bemol. Nem que seja para tocar o Parabéns pra você.
O instrumento havia sido importado há pouco, graças a uma boa alma que o trouxe na bagagem, escondido para escapar dos homens da alfândega. Só quem viveu naqueles anos pré-globalizados sabe como era difícil ter um instrumento de qualidade; os nacionais eram de dar dó — não a nota musical, mas o sinônimo de lástima, pena, compaixão.
O jeito foi voltar a tocar com a velha clarineta em dó — desta vez a nota propriamente dita. O som continuou bonito, mas, sem dúvida, era mais triste. Melancólico como o choro Lamento, de Pixinguinha, com dores adicionais. Não havia o recurso das 21 chaves, era preciso adaptar acordes e a lembrança do instrumento machucava.
Há 57 anos em Brasília, Walcyr veio trabalhar na presidência da República. Ocupou cargos importantes e foi “nomeado” embaixador do choro pelo então governador Elmo Serejo, impressionado com a perseverança de seu assessor de gabinete em conseguir um terreno para fundar o Clube do Choro. Tanto fez que conseguiu.
Foi eleito vice-presidente do clube, mas, com a morte do citarista Avena de Castro, seis meses depois, assumiu a presidência. O choro não tinha o reconhecimento de hoje, era música em extinção; para atrair público apelava-se para o paladar e servia-se um sarapatel.
Walcyr é, como se vê, um obstinado. Em casa, manteve a nota de compra com os dados da clarineta; mais que uma lembrança — carregava a esperança de um dia reencontrar o instrumento.
Meses depois alguém lhe disse ter ficado maravilhado com uma clarineta em si bemol tocada pelo maestro Manoel de Carvalho, professor da Escola de Música e fundador da Brasília Popular Orquestra. A orelha coçou. Com o número de série de fabricação nas mãos, ligou para o maestro, seu amigo. O número batia. Restava esclarecer o resto do mistério.
O maestro Carvalho, homem direito, havia conseguido o instrumento numa troca com um aluno iniciante. A clarineta foi esquecida no táxi do pai do menino que, sem encontrar o dono, deu para o filho, que começou a ter aulas.
Descoberta a confusão, Walcyr comprou uma nova clarineta, trocou com o aluno e devolveu o instrumento do maestro, recuperando a querida clarineta em si bemol. Do ladrão esquecido, nunca se soube, desfruta a impunidade.
A clarineta continua com ele, mas está abandonada. Ocupa um quarto da casa com outras preciosidades: uma flauta Birollo que pertenceu a Pixinguinha, o último cavaquinho de Waldir Azevedo, um sax de Abel Ferreira, pandeiros, tarraxas e platinelas de Pernambuco do Pandeiro.
Atualmente Walcyr Tavares prefere tocar um prosaico afoxé de fabricação própria na roda do Grao, no Lago Norte. Dia 13 de agosto ele fará 88 anos e está pensando se, para comemorar, não volta a soprar sua clarineta em si bemol. Nem que seja para tocar o Parabéns pra você.