A crônica da semana fala de amores findos e suas marcas na pele
Paulo Pestana
Publicação:19/08/2016 08:00Atualização: 19/08/2016 09:36
Havia alguma coisa de diferente com a mocinha que andava serelepe pela calçada da pista principal do Lago Norte. Não sou exatamente um sujeito que repara em minúcias, mas, quando ela parou para cumprimentar — é filha de um amigo, digo antes que me confundam com um tio sukita, se é que alguém ainda se lembra dele — foi logo adiantando o assunto: “Tirei a tatuagem; bem que o senhor me falou que eu não deveria ter feito”.
É duro ser chamado de senhor, mas é bom ter razão, ainda que o reconhecimento venha tardiamente; o que é um claro sinal de que eu sou um senhor mesmo. Só o passar dos anos nos permite alguma razão. Enfim, melhor me conformar, porque a alternativa a ficar mais velho é pior.
A mocinha havia feito a tatuagem no auge da paixão pelo rapaz que ela enxergou como o número um, o eleito, eterno e único. Se não me engano, era um coração estilizado, meio rococó, meio belle époque, com um cupido ao fundo, que deve ter dado um trabalho louco ao tatuador.
De simples, só o nome do amado, o único: Rui. Com i mesmo. Pois o tal Rui, a quem nunca conheci, fez alguma falseta e a mocinha inverteu a mão; decretou o impeachment dele. Depois eu soube que ele tentou se reconciliar, implorou como somente os homens são capazes de implorar — as mulheres são mais altivas, sempre; mesmo as barraqueiras — debulhou lágrimas de arrependimento, sofreu e bebeu (não necessariamente nesta ordem). Dois meses depois, estava casado.
O casamento deixou a mocinha ainda mais indignada. Ela não queria mais nada com ele, mas gostaria que ele sofresse mais, implorasse mais, se jogasse aos pés dela em sinal de suprema humilhação. Rui casou-se com uma moça da cidade natal dos pais, que ele só visitava quando ia ver os avós, uma paixonite infantil de férias revigorada e, agora, fulminante.
Foi quando a mocinha resolveu limpar todos os vestígios que Rui havia deixado na vida dela. Quase todos; a bolsa Louis Vuitton que ele havia trazido de Paris ela manteve, porque ninguém é de ferro e, claro, nem a fazia lembrar dele tanto assim. Os brincos que ela tanto gostava também foram mantidos. Mas livros, discos, filmes foram todos sumariamente encaixotados.
Faltava a tatuagem, indelével jura de amor eterno. Indelével uma pinoia. Ela foi a um tatuador e explicou a situação. Não era o mesmo profissional que caprichou tanto. Mesmo assim, ele tentou dissuadi-la. Disse que era uma obra de arte, que poderia tatuar outro nome; mas para a mocinha eram argumentos vãos; ela tinha que se livrar do desenho; aliás, do Rui inteiro. Não queria saber de nenhum sinal dele.
Foi uma operação dolorida, me disse ela. E ficou quase perfeita, embora seja obrigada a aplicar uma base para maquiagem no local — a panturrilha, ex-batata da perna — sempre que não está de calça comprida. “E agora?”, perguntei. “Estou apaixonada pelo Du e ele por mim. Mas esse merece uma tatuagem. Agora é para sempre.”