Crônica da semana: reflexões sobre o Maranhão, Guaraná Jesus e a Tiquira
Paulo Pestana
Publicação:02/09/2016 06:15Atualização: 02/09/2016 09:01
Não há quem não goste de um presente; mais do que o valor financeiro, vale pela lembrança, pela consideração, pelo desprendimento. Quando meu amigo chegou de São Luis foi logo avisando que tinha uma surpresa. Surpresa eu já não gosto. Imaginei tudo. E fiquei preocupado: não saberia o que dizer se fossem latinhas de guaraná Jesus, o único refrigerante cor-de-rosa do planeta, mistura de açúcar e canela que arrepiou Jânio Quadros quando, em campanha, teve que provar e elogiar.
Depois de eleito mostrou que podia não ter juízo, mas tinha boa memória ao fazer careta quando avistou o mimo oferecido por maranhenses ilustres. Mas quem sabe não seria uma das delícias culinárias do estado. Um camarão seco ao sol, molho de vinagreira para fazer arroz-de-cuxá, uma torta de siri, uma pescada amarela fêmea, um bocadinho de sarnambi... A surpresa só se revelou quando encontrei o amigo: era uma garrafa de tiquira. Para quem não está familiarizado, tiquira é uma parente distante da pinga. Em vez da cana, usa-se mandioca para fermentar e produzir o líquido arroxeado que deixava os índios zuretas e, provavelmente, com uma dor de cabeça louca, já que não havia aspirina. A tiquira é a verdadeira aguardente brasileira; estava aqui antes das caravelas. A caninha surgiu com os portugueses, que já eram craques na bagaceira, a aguardente de uva, e só transferiram a tecnologia. Mas enquanto uma e outra têm sabores relevantes, a tiquira se destaca pela ausência de cheiro e sabor — o cheirinho vem das folhas de tangerineira que entram na fervura — e pela graduação alcoólica que pode chegar a 55% — uma paulada na moleira.
Meu amigo certamente notou a minha cara de Jânio Quadros, pois se apressou em explicar que a tiquira é a nova queridinha dos barmen exatamente por não interferir muito no sabor dos demais ingredientes dos coquetéis, e começou a fazer uma mistura com grenadine e suco de caju. Se usasse álcool de cereais não seria muito diferente; doce demais, forte demais. Sem preconceito, um programa de índio.
Priscas eras, os silvícolas cavucavam uma árvore para fazer o que para eles era um barril e deixavam fermentar a mandioca ralada até formar o mosto. Depois ferviam. Tem tiquira de tudo o que é jeito, mas nenhuma delas tem a sofisticação da cachaça ou de outras aguardentes: é uma bebida para machos e porcos — os índios garantem que tomar banho depois de beber é morte certa.
Os maranhenses tentam colocar a tiquira no mapa etílico do Brasil faz tempo, mas sem sucesso. A produção ainda é artesanal, sem controle, e não há uma marca de reconhecida qualidade; ao contrário, os rótulos são toscos, revelando o caráter amador dos produtores, que não se preocupam em manter um padrão.
Aqui em Brasília não sei de ninguém que esteja criando drinques de tiquira, mas pode ser desinformação. A ilustre colônia maranhense que frequenta o Bar da Baixinha tem até saudade da cervejinha Cerma, mas fica longe da tiquira. Se alguém souber, por favor, não me avise.