Crônica da semana: A invasão
Paulo Pestana
Publicação:03/02/2017 06:15
O bom botequim tem que manter a fama de mau. Esses bares cheios de nove horas, comidinhas bonitinhas
e saudáveis, cadeiras elegantes e garçons solícitos até quebram o galho, mas pertencem a outra categoria. São butiques. Só falta aquele cheirinho de baunilha.
Dia desses fui levado coercitivamente — me senti um acusado sob vara e já condenado — a um desses estabelecimentos pagãos, que professam uma fé estranha à minha. Estava tudo no lugar, mas muita cerimônia, rito elegante — e, portanto, limitador — que nos constrange, tira o conforto.
O uísque era bom, a conversa idem, os petiscos não fizeram feio. Fiquei calado até alguém dizer: precisamos voltar aqui! — e a frase foi dita com o júbilo da exclamação. Mudei de assunto na mesma hora, afinal, na ocasião, o goleiro paraguaio do Botafogo merecia ser reverenciado, talvez, com uma estátua ao lado do Manequinho.
Dia seguinte, estava eu de volta à velha cadeira de plástico do bar de fé, observando o rapaz lavar os copos com a displicência de quem se vê obrigado a deixar uma lembrança do bebedor anterior para o próximo. Não que sejamos conservadores ou fiéis xiitas; muda-se de boteco, mas não se muda de ambiente.
Durante alguns anos, frequentamos um bar na Asa Norte com fidelidade canina. Era um estabelecimento humilde, banheiro unissex, bancos desconfortáveis, comida excelente, bebida honesta. À noite, frequência moderada; aos sábados os amigos se chegavam, emendando mesas.
Os almoços de sábado se estenderam, varando tardes, aproveitando-se que as senhoras estavam ocupadas com seus afazeres — é dia de salão, se você não sabe. Não sei o que se passa num salão de beleza, tenho medo de perguntar.
Certamente é diferente do que fazemos no bar, já que invariavelmente saímos com os cabelos ainda mais amarfanhados do que entramos. Mas muito alegres.
E alegria de marido chama a atenção de mulher. Como todas elas acreditam que a chamada cara-metade não pode ser feliz sem elas, vão à caça. Não apenas para descobrir o motivo da satisfação, mas, se possível, para destruí-la, acabar com essa concorrência — imagine: ele feliz; sem mim? E assim nosso refúgio dos sábados foi destruído.
Começou prosaicamente. Com uma amiga, uma das esposas sentou-se em mesa separada — “Finjam que não estamos aqui”, disse. Pois, sim. O marido, desafiador, continuou em nossa companhia, com cara de quem comeu e não gostou.
Mas não havia ameaça. Enquanto o banheiro fosse um só, imaginávamos, estaríamos salvos; mulher não gosta de dividir sanitário nem com marido, imagine com outros homens ruins de mira.
O dono do estabelecimento tinha outros planos e fez outro banheiro, só para elas; elegante, aliás, com toucador e espelho! Qual pé-sujo do mundo tem espelho? E toucador? A invasão foi incontrolável: como os aliados na Normandia, chegaram até de paraquedas. E o sagrado boteco do sábado virou reunião de famílias.
O italiano foi o primeiro a reclamar, mas perdeu o moral quando a mulher apareceu — trazendo o cunhado! E tudo degringolou quando outro comensal apareceu de braços dados com a própria sogra. Era a saideira.