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Crônica da semana: Ménage digital

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Paulo Pestana Publicação:07/04/2017 06:00
Tudo começou com os antigos correios elegantes, quando rapazes enviavam bilhetes para mostrar seu interesse em determinada moça nas festas populares. Hoje em dia, os recados vão gravados em vídeo, e delas para eles. E as moças mostram seus, digamos, dotes, rebolando e tirando a roupa ao som de músicas horríveis. Essa mudança ocorreu no espaço de uma vida — se é que eu não morri sem saber.

Todo dia vejo pelo menos uma mocinha sem roupa, falando coisas de fazer corar o marquês. Nenhuma delas fala comigo. Estão posando e mandando recadinhos para namorados, pretendentes, afins, sei lá. Eu — assim como milhares, talvez milhões — sou pego na rebarba, e acabo participando involuntariamente do ménage digital.
 
Ninguém precisa ser moralista. O mundo mudou — ouço isso todo dia também — e o único jeito de não conviver com essas mudanças é encaixotado, e à sete palmos (não me interessa). Mas essa troca de intimidades é estranha para quem está de fora, ainda mais quando a pelada em questão é uma conhecida. Aconteceu comigo.
 
A moça sempre foi discreta, quase recatada, conversava pouco, mas sorria e cumprimentava a todos no trabalho. Era um exemplo de eficiência na função e, encerrado o expediente, o noivo estava a esperar na porta. Nenhum dos homens da sala se criava ali; os mais ousados eram discretamente dispensados. Sempre com um sorriso.
 
Dia desses, anos depois de tê-la visto pela última vez, ela me aparece no telefone, num desses vídeos em que as moças mostram que curvas não atrapalham o rebolado quadradinho do funk. O mesmo sorriso, a simpatia de sempre, mas de um jeito que eu nunca imaginara ver (essa parte não é tão verdadeira assim; é lógico que já tinha imaginado aquilo, o que não é nenhum pecado).
 
Ela terminou a exibição, se aproximou da lente e falou o nome do felizardo, que não era mais o noivo, e mais uma série e insinuações, se é que, pelada como estava ela, ainda posso chamar assim. Não sei se teve o telefone hackeado como a Scarlett Johansson, se roubaram o aparelho ou foi um namorado canalha quem pôs em exibição na rede.
 
No dia seguinte perguntei a um ex-companheiro de trabalho sobre ela. Sabe onde anda? Ele não titubeou:
 
— Não sei. Mas a tenho visto peladinha.

Uma nota triste (blue note).
 
Dodi sonhou mostrar o jazz para quem pudesse ouvir. Era como Sebastian, personagem de Ryan Gosling, no filme La La Land, que lutou para ter um clube jazzístico. Como nas telas, Dodi, em parceria com Rubinho, conseguiu seu objetivo, quando abriram o Mistura Fina, num porão da 209 Norte. Mas era1980 e Brasília só tinha ouvidos para o rock. Ainda assim, os dois insistiram e mantiveram um ambiente para amantes do jazz em geral e músicos diletantes como ele, pianista esforçado, fã de Thelonius Monk e Bill Evans, embora melhor como servidor do Banco Central. Dodi morreu semana passada, vencido por um câncer no fígado, sem abandonar o jazz que ajudou a mantê-lo vivo.

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