Crônica da semana: Racismo em versos
Paulo Pestana
Publicação:23/08/2019 06:01Atualização: 22/08/2019 12:31
Como se faltassem polêmicas recentes, volta-se a falar do racismo na música brasileira e, de novo, da letra da marchinha O teu cabelo não nega, de Lamartine Babo. Pois o carnavalesco da Imperatriz Leopoldinense, escola que vai homenagear o compositor no ano que vem, vai mudar a letra do samba — o mesmo de 1981.
O pessoal reclama de ouvir "mas como a cor não pega/mulata eu quero seu amor"; é racista, mas era o mundo em 1932. Talvez a reação fosse menor se soubessem que o arranjo da marchinha é de Pixinguinha, também diretor da orquestra na gravação original, de Castro Barbosa. Ainda menor se soubessem que o pistom que se ouve ali é do estupendo Bonfiglio de Oliveira.
A nota racista da história ocorreu no lançamento da música, nos salões do Fluminense. Irritados com a presença de artistas negros — Pixinguinha e Bonfiglio, entre eles — alguns sócios se retiraram do salão. E o que Lamartine não gostava de dizer é que os versos polêmicos nem eram dele, mas dos irmãos João e Raul Valença, e vinham de uma outra música, Mulata. Por um desses acasos, esta semana herdei um dos "cadernos de letras" em que o pesquisador Renato Vivacqua reproduz de próprio punho letras de canções hoje praticamente esquecidas, que ele encontrava esparsamente. E ali há uma boa medida de como a música brasileira tratou a questão racial; felizmente, pelo menos neste caderno, o saldo é positivo.
Para início de conversa, Haroldo Lobo e Wilson Batista fizeram Essa vida não é sopa, uma constatação biológica — "pra que ter orgulho, com o nosso esqueleto, se o branco e o preto, têm o mesmo fim". O mesmo Wilson Batista, com Marino Pinto, tratou da desilusão amorosa em Preconceito: "Eu vou fazer serenata, eu vou cantar minha dor/meu samba vai e diz a ela, que coração não tem cor".
Há homenagens aos negros. Algumas destacando feitos heroicos, como Negro artilheiro (1946), de Herivelto Martins e Sinval Silva, sobre a bravura dos expedicionários. "Negro quando foi convocado/ Esqueceu seu roçado, e partiu para brigar/Negro dispensou o ordenado/ Esqueceu que é casado e tem filho pra criar/Preferiu brigar, preferiu morrer/Pra que o filho crescesse e pudesse viver".
Em O negro e o café, de Ataulfo Alves e Orestes Barbosa, buscava extrair poesia do terror. "Negro de ferro no pé, chorava muito e sangrava enquanto plantava café/o café, fruto vermelho, transforma depois a cor, na cor da pele onde o velho fez sangrar rubis de dor". Há até homenagens estapafúrdias, como Escurinha (1950), de Leduvy de Pina e Brasinha: "Da cor do petróleo, a escurinha tem cartaz/quebra qualquer monopólio, manda mais que a Petrobras".
Mas o preconceito era evidente, caso da marchinha surreal Cabelo couve-flor (1946), de Pereira Matos e Ayrton Amorim. "Eu vi sair, lá de dentro do vapor, uma nega de luneta e de cabelo couve-flor/quando eu vi aquela negra tão bacana, eu pensei que ela fosse uma artista americana/dei risada quando ela me falou: eu sou a nega maluca do carnaval que passou". Preconceito a gente combate, mas a História não se apaga.