Filme sobre a filósofa alemã conquista público que cresce a cada semana
Em todo o Brasil já foram 94 mil espectadores que já assistiram desde a estreia de Hannah Arendt
Estado de Minas
Publicação:29/08/2013 09:03Atualização: 29/08/2013 09:12
Quem pensa que um filme sobre filosofia alemã pode funcionar como um sonífero é melhor reconsiderar a questão depois de experimentar uma sessão de Hannah Arendt, em cartaz em Belo Horizonte. O longa da diretora Margareth von Trotta sobre a pensadora alemã, conhecida por provocar reflexões políticas sobre a vida em sociedade, é um bom exemplo de que nem sempre a combinação entre a ciência do pensamento e a indústria de massa é antagônica. Há um meio-termo possível.
Em exibição desde o final de julho, o filme completará seis semanas em cartaz, com público crescente e ampliando o número de salas em relação à estreia. De acordo com a distribuidora Esfera Cultural, em todo o Brasil foram 94 mil espectadores. Somente no Cine Belas Artes, em Belo Horizonte, mais de 6 mil já conferiram o trabalho dirigido por Margarethe von Trotta. Claro que não se trata de um blockbuster, mas o aumento de público fora do padrão permite defender uma tese: se as ideias de Arendet despertam interesse para além dos muros das universidades é porque ganham novos contornos no encontro com outras plateias.
popular assim fora da academia. Porém, as ideias dela sobre o bem, o mal, as origens do totalitarismo e, principalmente, a necessidade de pensamento nunca perdem relevância. Altamente biográfico, Hannah Arendt se passa na década de 1960, precisamente na ocasião do julgamento do nazista Adolf Eichmann, acusado de ser um dos arquitetos da solução final de extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra.
Às vésperas do julgamento no tribunal em Jerusalém, a professora (interpretada por Barbara Sukowa) se oferece para fazer a cobertura para a revista The New Yorker. Divididos em cinco partes, os artigos causaram grande alvoroço na mídia. “Enquanto todos estavam ali meio levados pela dimensão propagandística desse julgamento, sobretudo os judeus, ela lança uma perspectiva absolutamente nova”, explica o professor de filosofia da Uni-Rio, Rodrigo Ribeiro.
Ao contrário da voz corrente, Hannah não atribuiu a Eichmann o status de monstro. “Ela viu nele a encarnação máxima da ausência de pensamento. Quando alguém realiza algo por obediência a regras, está completamente desconectado do próprio mundo e é incapaz de pensar”, continua Rodrigo. À medida que a narrativa do filme destaca o peso do episódio de Eichmann no desenvolvimento da obra de Hannah Arendt, em forma de flashback, outras questões relacionadas à vida da pensadora são apresentadas. Foi a partir daquela experiência que Arednt formulou a célebre tese sobre a banalidade do mal.
Sem didatismos, o espectador vai conhecendo uma mulher forte, profundamente marcada pelas ideias do antigo mestre, o filósofo Martin Heidegger, sempre em busca de uma perspectiva diferente do convencional. “O filme é muito bom, mas como todo longa, não é capaz de alcançar toda a complexidade da obra de Arendt. Acredito que o filme é um convite para a leitura da obra de Arendt”, diz Ana Paula Repolês, autora do livro O sentido da política em Hannah Arendt.
A professora aposentada da UFMG Maria Thereza Calvet adota posição crítica em relação ao filme de Margarethe von Trotta. Para ela, apesar de ser uma produção benfeita, a escolha por se dedicar ao conceito de banalidade do mal e precisamente ao episódio do julgamento de Adolf Eichmann é infeliz. “Era a reportagem de um julgamento e ela mesma dizia que ninguém leu o livro. Foi acusada de dizer coisas que não disse”, explica. Segundo Maria Thereza Calvet, existem outros aspectos na obra da pensadora tão ou mais importantes do que a colaboração feita para a revista americana.
“Tenho a impressão de que a diretora conhece muito a obra dela. É impressionante a fidelidade como isso aparece no filme, a ponto de ser uma introdução ao pensamento arendtiano. O espectador, de fato, aprende alguma coisa”, ressalta o professor do Departamento de Filosofia da UFMG Helton Adverse. Escaldado por outras experiências nem tão interessantes assim, ele diz que saiu do cinema agradavelmente surpreendido. “A obra consegue de fato recapturar alguns pontos fundamentais do pensamento de Hannah Arendt, sobretudo uma parte importante na obra dela, na qual critica certas concepções do totalitarismo”, salienta.
Como destaca Helton Adverse, a cobertura do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém é um dos pontos mais polêmicos e também mais fecundos da obra de Hannah Arendt. Para Rodrigo Ribeiro, o que inicialmente chamou a atenção foi o fato do quanto as narrativas sobre circunstâncias históricas são difíceis de ser retratadas na tela, ainda mais quando conceitos filosóficos estão envolvidos. “A maior virtude foi mostrar como uma circunstância histórica na vida de Hannah fez com que ela se confrontasse com o mundo e assim ter sido levada a pensar”, ressalta o professor.
“A grande atualidade da obra de Arendt é não só o diagnóstico da sociedade moderna, uma sociedade na qual a lógica do consumo, do supérfluo e do descartável está dominando todas as relações, fazendo com que os fins sempre se tornem novos meios, perdendo-se assim todos os valores e parâmetros, mas também a importância de o pensamento estar sempre vinculado aos acontecimentos. Indo contra a tradição do pensamento filosófico, Arendt ressalta a necessidade de a filosofia voltar-se para problemas que nos atinjam cotidianamente, de a filosofia não ser oposta à política, ao domínio dos assuntos humanos e da contingência”, analisa Ana Paula Repolês.
Para ela, a aproximação entre a filosofia e o cinema pode ser encarada como forma de resistência ao emprobecimento da cultura nas sociedades de massa. “Pois até a arte está se tornando bem de consumo, algo que é devorado para suprir necessidades do processo vital biológico. A filosofia no cinema pode se apresentar, então, como um mecanismo de instigação ao pensar, e não de apresentação de respostas claras e evidentes para um mundo onde não há mais certezas absolutas”, analisa.
Uma vida de resistência
Filha de família judia rica e intelectualizada, Hannah Arendt nasceu em 1906, em Hannover, na Alemanha. Entrou na faculdade em Berlim, em 1924, onde foi aluna de Heidegger, seu mestre e amante por um período. Em 1928, doutora-se em filosofia com tese sobre o conceito de amor em Santo Agostinho, orientada por Karl Jaspers. Em 1933, depois de ser temporariamente presa por causa do envolvimento com a resistência sionista ao nazismo, Hannah foge para Paris. Em 1941, refugiou-se nos Estados Unidos. Em 1951, obteve a cidadania americana e no mesmo ano publicou Origens do totalitarismo, um amplo estudo sobre o antissemitismo, nazismo e comunismo. Foi professora da New School for Social Research, em Nova York.
Em 1958, publica A condição humana e em 1961 viaja a Jerusalém, para fazer a cobertura do julgamento de Eichmann para a revista The New Yorker. As reportagens deram origem ao livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Entre suas obras figuram clássicos como Entre o passado e o futuro, Homens em tempos sombrios e Sobre a revolução. Arendt morreu em Nova York, em dezembro de 1975.
Hannah Arendt, interpretada por Barbara Sukowa, luta com as armas das razão contra o consenso da comunidade judaica e da opinião pública internacional
Quem pensa que um filme sobre filosofia alemã pode funcionar como um sonífero é melhor reconsiderar a questão depois de experimentar uma sessão de Hannah Arendt, em cartaz em Belo Horizonte. O longa da diretora Margareth von Trotta sobre a pensadora alemã, conhecida por provocar reflexões políticas sobre a vida em sociedade, é um bom exemplo de que nem sempre a combinação entre a ciência do pensamento e a indústria de massa é antagônica. Há um meio-termo possível.
Em exibição desde o final de julho, o filme completará seis semanas em cartaz, com público crescente e ampliando o número de salas em relação à estreia. De acordo com a distribuidora Esfera Cultural, em todo o Brasil foram 94 mil espectadores. Somente no Cine Belas Artes, em Belo Horizonte, mais de 6 mil já conferiram o trabalho dirigido por Margarethe von Trotta. Claro que não se trata de um blockbuster, mas o aumento de público fora do padrão permite defender uma tese: se as ideias de Arendet despertam interesse para além dos muros das universidades é porque ganham novos contornos no encontro com outras plateias.
popular assim fora da academia. Porém, as ideias dela sobre o bem, o mal, as origens do totalitarismo e, principalmente, a necessidade de pensamento nunca perdem relevância. Altamente biográfico, Hannah Arendt se passa na década de 1960, precisamente na ocasião do julgamento do nazista Adolf Eichmann, acusado de ser um dos arquitetos da solução final de extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra.
Às vésperas do julgamento no tribunal em Jerusalém, a professora (interpretada por Barbara Sukowa) se oferece para fazer a cobertura para a revista The New Yorker. Divididos em cinco partes, os artigos causaram grande alvoroço na mídia. “Enquanto todos estavam ali meio levados pela dimensão propagandística desse julgamento, sobretudo os judeus, ela lança uma perspectiva absolutamente nova”, explica o professor de filosofia da Uni-Rio, Rodrigo Ribeiro.
Ao contrário da voz corrente, Hannah não atribuiu a Eichmann o status de monstro. “Ela viu nele a encarnação máxima da ausência de pensamento. Quando alguém realiza algo por obediência a regras, está completamente desconectado do próprio mundo e é incapaz de pensar”, continua Rodrigo. À medida que a narrativa do filme destaca o peso do episódio de Eichmann no desenvolvimento da obra de Hannah Arendt, em forma de flashback, outras questões relacionadas à vida da pensadora são apresentadas. Foi a partir daquela experiência que Arednt formulou a célebre tese sobre a banalidade do mal.
Sem didatismos, o espectador vai conhecendo uma mulher forte, profundamente marcada pelas ideias do antigo mestre, o filósofo Martin Heidegger, sempre em busca de uma perspectiva diferente do convencional. “O filme é muito bom, mas como todo longa, não é capaz de alcançar toda a complexidade da obra de Arendt. Acredito que o filme é um convite para a leitura da obra de Arendt”, diz Ana Paula Repolês, autora do livro O sentido da política em Hannah Arendt.
A professora aposentada da UFMG Maria Thereza Calvet adota posição crítica em relação ao filme de Margarethe von Trotta. Para ela, apesar de ser uma produção benfeita, a escolha por se dedicar ao conceito de banalidade do mal e precisamente ao episódio do julgamento de Adolf Eichmann é infeliz. “Era a reportagem de um julgamento e ela mesma dizia que ninguém leu o livro. Foi acusada de dizer coisas que não disse”, explica. Segundo Maria Thereza Calvet, existem outros aspectos na obra da pensadora tão ou mais importantes do que a colaboração feita para a revista americana.
“Tenho a impressão de que a diretora conhece muito a obra dela. É impressionante a fidelidade como isso aparece no filme, a ponto de ser uma introdução ao pensamento arendtiano. O espectador, de fato, aprende alguma coisa”, ressalta o professor do Departamento de Filosofia da UFMG Helton Adverse. Escaldado por outras experiências nem tão interessantes assim, ele diz que saiu do cinema agradavelmente surpreendido. “A obra consegue de fato recapturar alguns pontos fundamentais do pensamento de Hannah Arendt, sobretudo uma parte importante na obra dela, na qual critica certas concepções do totalitarismo”, salienta.
Como destaca Helton Adverse, a cobertura do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém é um dos pontos mais polêmicos e também mais fecundos da obra de Hannah Arendt. Para Rodrigo Ribeiro, o que inicialmente chamou a atenção foi o fato do quanto as narrativas sobre circunstâncias históricas são difíceis de ser retratadas na tela, ainda mais quando conceitos filosóficos estão envolvidos. “A maior virtude foi mostrar como uma circunstância histórica na vida de Hannah fez com que ela se confrontasse com o mundo e assim ter sido levada a pensar”, ressalta o professor.
“A grande atualidade da obra de Arendt é não só o diagnóstico da sociedade moderna, uma sociedade na qual a lógica do consumo, do supérfluo e do descartável está dominando todas as relações, fazendo com que os fins sempre se tornem novos meios, perdendo-se assim todos os valores e parâmetros, mas também a importância de o pensamento estar sempre vinculado aos acontecimentos. Indo contra a tradição do pensamento filosófico, Arendt ressalta a necessidade de a filosofia voltar-se para problemas que nos atinjam cotidianamente, de a filosofia não ser oposta à política, ao domínio dos assuntos humanos e da contingência”, analisa Ana Paula Repolês.
Para ela, a aproximação entre a filosofia e o cinema pode ser encarada como forma de resistência ao emprobecimento da cultura nas sociedades de massa. “Pois até a arte está se tornando bem de consumo, algo que é devorado para suprir necessidades do processo vital biológico. A filosofia no cinema pode se apresentar, então, como um mecanismo de instigação ao pensar, e não de apresentação de respostas claras e evidentes para um mundo onde não há mais certezas absolutas”, analisa.
Atriz Barbara Sukowa em cena do filme Hannah Arendt
Uma vida de resistência
Filha de família judia rica e intelectualizada, Hannah Arendt nasceu em 1906, em Hannover, na Alemanha. Entrou na faculdade em Berlim, em 1924, onde foi aluna de Heidegger, seu mestre e amante por um período. Em 1928, doutora-se em filosofia com tese sobre o conceito de amor em Santo Agostinho, orientada por Karl Jaspers. Em 1933, depois de ser temporariamente presa por causa do envolvimento com a resistência sionista ao nazismo, Hannah foge para Paris. Em 1941, refugiou-se nos Estados Unidos. Em 1951, obteve a cidadania americana e no mesmo ano publicou Origens do totalitarismo, um amplo estudo sobre o antissemitismo, nazismo e comunismo. Foi professora da New School for Social Research, em Nova York.
Em 1958, publica A condição humana e em 1961 viaja a Jerusalém, para fazer a cobertura do julgamento de Eichmann para a revista The New Yorker. As reportagens deram origem ao livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Entre suas obras figuram clássicos como Entre o passado e o futuro, Homens em tempos sombrios e Sobre a revolução. Arendt morreu em Nova York, em dezembro de 1975.