Super-herói brasileiro abusa do politicamente incorreto em 'O Doutrinador'
O longa flerta com a realidade em diversos pontos
Impossível assistir ao filme que coloca em cena o primeiro super-herói nacional, sem ter saudades do bom e velho Capitão Nascimento, personificado por Wagner Moura na telona. Ainda que O Doutrinador tenha distanciamento gigantesco da realidade, o eco de Tropa de elite habita a obra: há de agentes de choque batucando em escudos à representação de políticos com a ficha pra lá de imunda, além de ações de cidadãos que se lançam em investigações de fraudes paralelas ao Estado.
"Quem não reage, rasteja", incita um discurso plantado na obra que tem direção de Gustavo Bonafé e codireção de Fábio Mendonça.
Na trama, são explorados temas como burocracia, acomodação e vitimização social, com discussões de corrupção e o retrato do poder de "evolução" social — sintetizado em ruidosas manifestações — para uma virada de página da fictícia metrópole de Santa Cruz, em que a trama é ambientada.
Mas, longe de facções ideológicas, pesa no filme a ação algo pauleira constante em fitas de heróis. O agente federal Miguel (Kiko Pissolato), depois de uma enorme crise pessoal, não quer saber de estancar a sangria: atende pelo nome de revolta e vingança — estendida à corja de políticos que afundam um Brasil recriado pelos moldes da imaginação de Luciano Cunha, autor das histórias em quadrinhos nas quais o longa é baseado.
Com representação de risos maldosos e desfaçatez, além de tiradas de consenso entre o público — a mais significativa é dita por um político ("Isso aqui não é o Congresso Nacional para vocês ficarem de gracinha") —, o filme conduzido por Bonafé não disfarça o traçado pesado de ter migrado dos quadrinhos.
À paisana, o super-herói do filme atende pelo nome de Miguel (Kiko Pissolato), sendo um agente federal integrado às ações da Divisão Armada Especial. Um governador diabólico (interpretado por Eduardo Moscovis) dá vazão ao que de pior habita Miguel. A certa altura, ele até ouve de um temporário desafeto: "Você é policial, né? Pode tudo!".
Entre uma campanha para presidente da República e manifestações políticas que ocupam as ruas o super-herói se vê formado. Numa passagem muito desajeitada, rodeado por coquetéis molotov e pelo esculacho total reservado aos "vândalos" das ruas, o Doutrinador se forma, praticamente tropeçando numa máscara e tentando se proteger, depois de uma constrangedora (e interminável) cena de corrida movida ao som de Soundgarden.
A situação calamitosa dos leitos de hospital, as filas para atendimento e o contraste da vidona dos políticos (que chegam a celebrar, com "O país é nosso!") testam Miguel, a ponto de ele dar vazão a toda raiva que ele carrega, numa postura bem radicalizada.
Um festival de conchavos políticos para a "máquina funcionar", num roteiro capenga (ainda mais quando se leva em conta a existência de sete cocriadores) que contempla exagerados clichês e caricaturas (a bala que atravessa o herói, música clássica para o vilão, o quartel-general obscuro do Doutrinador), e doses de violência forte se alinham num bom passatempo.
Numa Brasília estilizada, em cena memorável, o Congresso tem seu destino selado. Em O Doutrinador pesa o corre-corre bem orquestrado, em que o protagonista maneja até duas armas, simultaneamente.