Nem Judas, nem Jesus: confira a crítica do filme 'O beijo no asfalto'
Longa de estreia de Murilo Benício como diretor traz novidades sem desrespeitar a excelência de Nelson Rodrigues
Ricardo Daehn
Publicação:07/12/2018 06:00
Os apartes de Fernanda Montenegro são um dos pontos altos desta releitura do clássico 'O beijo no asfalto'
Fosse uma ópera, a adaptação do diretor Murilo Benício para texto de O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues, teria no libreto um espaço reservado para o coro de cafajestes. Ao gerenciar, à revelia, conceitos de respeito e condenações, os atores Augusto Madeira e Otávio Müller tiram o espectador do sério na pele, respectivamente, do delegado Cunha e do jornalista de imprensa marrom Amado.
“O beijo do meu marido ainda tem a saliva de outro homem”, diz, em determinado momento, a personagem mais manobrada em toda a trama do longa, a quase viúva Selminha (Débora Falabella, tenaz, na medida), que tem o marido Arandir (Lázaro Ramos) dado quase como morto por causa do efeito de ser execrado em manobras sociais que condenam um gesto espontâneo: beijar outro homem, que agonizava depois de atropelado.
Nem Judas, nem Jesus: no beijo dos suburbanos está a apresentação de um dilema que nutre uma dramaturgia inesgotável. A verdade é que ainda que Benício empregue estilo e acople recursos de distração (os apartes de Fernanda Montenegro são preciosos, bem como o alcance de sua interpretação), ele se satisfaz com a condição de veículo para a excelência de Nelson.
“Meu ódio é amor” talvez seja a máxima do texto (desempenhada por inesquecível Stênio Garcia). Nela irrompem os excessos de Nelson que verte sentimentos, contradições e frustração — tudo num furacão que realimenta e ecoa o inesperado.