Em crônica da semana, Paulo Pestana fala sobre assombração
Histórias de almas penadas normalmente são ambientadas em casas velhas e cheias de teia de aranha. Não me recordo de saber algo sobre espírito vagante em botequim, embora o ato de derramar um pouquinho da pinga do copo para o santo carregue significado de outro mundo.
E nem sempre as histórias trazem elementos clássicos, como correntes arrastadas, portas batendo e ventos uivantes; ou raios e trovões, também comuns nas narrativas arrepiantes.
Mas a noite é onipresente. E assim foi mais uma vez. Depois de mais um dia extenuante de trabalho, Ivanise baixava a porta de ferro e, ao fechar o cadeado, sentiu a mão tocar-lhe o ombro. Ao olhar para trás, um fio gelado correu-lhe pela espinha, eriçando os pelos do corpo. Mesmo sem ver o rosto, de alguma forma, ela sabia que era um conhecido.
Conhecido, mas morto. Antigo cliente, fora vítima de morte violenta no Recanto das Emas, e como alma não depende do nosso claudicante transporte público, naquela noite fez sua aparição no Grão, bar que fica no fim da pista do Lago Norte.
Ivanise é mulher valente como quase toda baixinha, mas uma coisa é enfrentar um bebum, outra bem diferente é desafiar um enviado do além. A noite foi mais longa que o normal. O cansaço do corpo não foi suficiente para que ela chegasse ao R.E.M. (sigla em inglês para rápido movimento dos olhos), que é o instante mais profundo do sono.
A luz do dia é companheira dos hesitantes; a luminosidade de Brasília nesses dias pré-primaveris é ainda mais amiga. Os pê-efes saíram com o capricho de sempre, à tarde foi às compras; o caminhão com as cervejas atrasou, mas chegou e, com ele, veio a noite.
A frequência noturna era a usual, as mesmas caras; senhores ainda de gravata faziam pit-stop para a cervejinha que alivia a pressão do trabalho, aposentados ainda não diabéticos em fuga de casa, o pessoal que vai assistir ao jornal e comentar as notícias, gatos pingados esperando um jogo da série B.
A baixinha Ivanise não parou um minuto, servindo e recebendo as contas, com o contagiante bom humor de sempre — ela carrega um permanente sorriso de monalisa no canto da boca; pena que fica escondido pelo cigarro apagado que ali jaz pendurado.
O jogo acabou, os fregueses saíram e, quando ouviu a despedida do último deles, como um mercúrio, colocou duas latinha de Antarctica no balcão. “Não, já bebi o suficiente”, disse Toinho pela primeira vez na vida — o rapaz é conhecido pela sede insaciável. “É por conta da casa”, disse Ivanise, também pela primeira vez na vida, já que ela não é de dar folga.
E esclareceu: a alma do antigo cliente estava ali de novo e ela não ia ficar sozinha com o espectro. Toinho não acreditou. “Ele está bem atrás de você”, disse ela. Aí foi Toinho quem gelou, pegou a latinha e saiu. “Vou te esperar lá fora”.
No dia seguinte a turba comentava o caso e Luís comentou: “Mas Baixinha, você que enfrenta todo mundo com medo de assombração...”. Ela, olhando por cima dos óculos, disparou: “Você, eu encaro, mas não quero confusão com alma”.