Crônica da semana: Licença para pecar
Paulo Pestana
Publicação:21/02/2020 06:00
O carnaval vive um paradoxo. Já faz alguns anos que a folia nas ruas, o que antigamente se chamava de bloco de sujos, voltou com força, mas, além de uma violência incomum para um período festivo e de suposta alegria e descontração, a música não se renova; são as velhas (e boas) marchinhas de sempre que embalam os foliões.
Mas o que vem incomodando o pessoal do bar — todos foliões aposentados — é a falta completa de novidades. Para os mais radicais, o carnaval não faz mais sentido. Desde a origem, eram dias de libertação e subversão, uma licença para pecar; hoje a bagunça e a libertinagem ocupam os outros 362 dias do ano — 363 no caso de 2020.
Há quem enxergue as saceias babilônicas como as primeiras grandes farras. Não tinha marchinha, mas seguramente havia alguém com uma ocarina fazendo fuzuê; e na ocasião um prisioneiro passava dias sendo tratado como rei, até que ao final era decapitado — ou seja, era divertido, mas só até certo ponto.
Os gregos criaram as bacanais, grandes festas desregradas, dedicadas ao vinho e à carne crua. Mais tarde, os cristãos deram um caráter religioso à festa, mas, ainda assim, eram dias em que os santos fechavam os olhos para os pecados.
O que anda incomodando o nosso amigo Faixa, hoje, é que a atração pelo proibido acabou. Não precisa de carnaval para liberar demônios, excentricidades ou vergonhas. O mundo não precisa mais de bailes de máscaras para rostos ocultos revelarem taras inconfessáveis, nem cachaça na mamadeira — transviar é parte do cotidiano.
Para ele, não há mais a menor graça e não apenas por causa dos quase setenta outonos. “Homem vestido de mulher era só no carnaval”, disse. “Hoje, além de se vestir de mulher o ano todo, o sujeito é chamado pelo pronome feminino!”.
E foi relacionando fatos que eram exclusivos do reinado de Momo e que hoje fazem parte do dia a dia. Lembrou que moças ficavam mais liberadas, que bêbados eram festejados, que drogas — lança-perfume — eram toleradas, que as pessoas faziam o que bem entendiam, recuperando a dignidade só na quarta-feira à tarde.
Era como o personagem de Assis Valente, que tirava o anel de doutor para não dar o que falar e se fantasiava de Antonieta para dançar no Bola Preta até o sol raiar.
Ao final, exaltado, decretou que o mundo tinha se tornado um imenso carnaval, virado do avesso e o rei Momo estava deposto. “Esculhambaram a esculhambação”, disse com aquele olhar de saudade de tempos animados com confetes e serpentinas.
A providência fez com que uma jovenzinha de cabelos roxinhos e collant estampado passasse ao lado, cheia de graça como na música, fazendo a corocada encolher as barrigas e se imaginar na praia com 30 anos a menos. Era digna de amadrinhar uma bateria. Antes que alguém falasse alguma coisa, o Faixa se adiantou: “Pensando bem, tem vantagens. Antigamente a gente demorava o ano todo para ver um desfile como esse; hoje está aqui na porta e nem precisa esperar o carnaval”.