Brasília-DF,
23/NOV/2024

Crônica da semana: Pulando de cara feia

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Paulo Pestana Publicação:14/02/2020 06:01Atualização:13/02/2020 16:02
Era para ser três dias de folia e brincadeira, como se cantava na marchinha, mas parece que o mau humor tomou conta até do carnaval. O que antes misturava lirismo, deboche, crítica e até esculacho virou panfleto. E panfleto é chato, não combina com carnaval.

Protesto combina. Ao mesmo tempo em que o folião pergunta à jardineira porque está tão triste, reclama da falta d’água: “Tomara que chova/ Três dias sem parar/ A minha grande mágoa / É lá em casa não ter água/ Eu preciso me lavar”, cantou Emilinha Borba, em 1950.

Já em 1949, Vocalistas Tropicais reclamavam da falta de moradia cantando “daqui não saio/ Daqui ninguém me tira/ Onde é que eu vou morar?”, mesmo tema dos Quatro Ases e um Coringa: “Francamente, pra viver nessa agonia/Eu preferia ter nascido caracol/ Levava minha casa nas costas muito bem/ Não pagava aluguel nem luvas a ninguém” (Marcha do Caracol, 1950).

O primeiro político caricaturado por uma marchinha foi, provavelmente, Artur Bernardes, em Ai, seu Mé (1921), mangando de uma suposta semelhança com um bode. “O queijo de Minas está bichado, seu Zé/ Não sei porque é, não sei porque é/ Prefira bastante apimentado, Iaiá/ O bom vatapá”, numa referência ao oposicionista, Rui Barbosa.

O poder não achou graça. Inicialmente anônimos, os autores, Freire Junior e Luis Sampaio, foram presos logo que Bernardes assumiu a Presidência. Mas a galhofa continuou por outros carnavais.

Nem é preciso ir longe. Há dois anos, o veterano João Roberto Kelly lançou Alô, Alô, Gilmar, brincando com a fartura de habeas corpus do ministro. “Eu tou em cana, vem me soltar”, cantou o autor de Cabeleira do Zezé. 

Mas este ano parece que ninguém quer saber de muita brincadeira. Tem até marchinha oficial do PT, com jeitão de palavra de ordem: Ai que Saudade do Meu Ex, que diz “Lula tá solto, mas pra gente ser feliz, é Lula livre. O bandido era o juiz”. 

Mais mal-humorado ainda é o maranhense Zeca Baleiro, que, sem a menor sutileza e a mínima vontade de brincar, lançou um EP (disco de quatro faixas) com marchinhas-quase-frevos que remetem à origem bélica do gênero — sim, antes do carnaval, marchas guiavam soldados nas campanhas. 

Em Escória, ele dá o tom: “Vou lhes dizer/ O que é arte e cultura/ Não vai crescer nem capim/ Sobre vossa sepultura” e não tem medo de avançar sobre o pantanoso terreno da escatologia em outras duas canções: “O Brasil abriu a tampa do esgoto/ Só bichos escrotos/ Só ratos” (Bichos Escrotos II) e “Respeita Fernanda Montenegro, babaca/ Você saiu de que cloaca” (Babaca Mané). É o carnaval black block, sutileza zero.

Mas a gaiatice sobrevive. A marchinha Cedae ou Desce narra o sufoco carioca com a água suja e fedorenta que sai das torneiras: “Tem cocô na minha água/ Maior bagunça lá pros lados de Guandu/ Vazou esgoto, que ódio, que gosto de terra, que gosto de (aqui entra a rima muito feia para ser publicada).

Carnaval é bagunça; mas nem tanto.

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