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Crônica da semana: Tempos modernos

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Paulo Pestana Publicação:17/03/2017 06:04
Mesmo num tempo de maravilhas eletrônicas, renovação constante de paradigmas e todo esse blá, blá, blá de alta tecnologia, tem coisa que não se mexe. No bar, por exemplo. É um ambiente conservador. Em alguns deles até as moscas são as mesmas.

Os frequentadores, repare, estão sempre nas mesmas mesas, lugares cativos, e quando a cadeira de fé está ocupada olham feio para o garçom que é obrigado a dar um jeito de devolver a normalidade ao ambiente. As moscas quase atendem pelo nome.
 
Donos de bar são também conservadores. Lembro-me o desespero de um deles quando quebrou o congelador — era como chamávamos o freezer no tempo em que o Brasil falava português. Paúra justificada: conhecido pelas cervejas servidas brancas como pé de pedreiro, demorou anos para desenvolver o método; tinha receio de não conseguir replicá-lo depois do conserto.
 
Foi por isso que todos estranharam a notícia que saiu da boca do Soares, o dono daquele estabelecimento. Com algum orgulho, ele esperou a mesa habitual das quintas-feiras se completar para anunciar: — Pessoal, a partir da semana que vem vamos ter internet sem fio grátis aqui no restaurante (sim, não gostam de dizer que têm um bar ou boteco; desde que sirvam um pf ou até um caol, vira restaurante).
 
Esperava efusivo aplauso, mas foi recebido com muxoxos, indiferença e protestos. Havia mexido num vespeiro, até porque dono de bar está ali para atender o freguês e ninguém havia pedido nada.
 
A turma nunca reclamou do sinal ruim no local. Ao contrário, era uma desculpa boa para sumir do mundo.
 
E ninguém estava ali para conversar com pessoas que estão a quilômetros de distância, quando havia bom papo bem ao lado, com direito a todas as inflexões, caretas e ironias que aqueles bonequinhos emoji não conseguem reproduzir.
 
A novidade estava na contramão e, mesmo com os protestos, ele usou da despótica autoridade que todo dono de bar tem para manter o que estava anunciado. “Até cadeia tem sinal de celular”, dizia, misturando bugalhos, inconformado com a péssima recepção da novidade.
 
Era preciso um bravo para amarrar o guizo naquele tigre e fazê-lo desistir da ideia. A internet sem fio, temia a turma, acabaria com a conversa fácil, vítima da tentação de olhar para o aparelho a cada apito de mensagem — “preciso ver se é mamãe”, “pode ser urgente”, há sempre uma desculpa para atrapalhar o fluxo do fiado (não é curiosa a preferência que se dá a quem não está presente?).
 
No bar não há lugar para o mundo moderno, dizia um, provavelmente lembrando o óleo que jaz na fritadeira há tempos. A única novidade suportada foi a instalação da tevê a cabo para que fosse exibido o campeonato turco ou qualquer pelada no ar. De resto, tudo igual como sempre havia sido desde a época em que Soares tinha um bigode fino, rapado quando começou a embranquecer.
 
Soares não cedeu ao bravo. O boteco agora tem internet sem fio. Mas continua tudo como antes: não funciona. O refúgio está intacto.

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