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Crônica da semana: Terapia de mesa

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Paulo Pestana Publicação:14/04/2017 06:02
No divã não cabe recuo. Tudo o que o camarada anotou no bloquinho, mais cedo ou mais tarde, vai ser usado contra o paciente, normalmente acompanhado daquela aquiescência vestida de compreensão, mas que carrega um bocado de conceitos pré-estabelecidos, ou seja, preconceitos —  embora essa seja uma palavra proibida aos profissionais do ramo.

No bar é diferente. A confissão de hoje pode não valer nada amanhã. Se o sujeito disser que estava brincando, acabou-se, a turma muda o assunto e a vida segue. Depois se decide em qual versão acreditar, mas isso já é parte do fuxico, que é outro tipo de terapia etílica. “É preciso falar mal dos outros, mas não por maldade; só para ter o que falar”, sempre diz Betão, sem saber que está parafraseando o compositor Fernando Lobo.

Assim, as pessoas — mesmo que carreguem as mais verecundas preocupações — se sentem à vontade para dizer suas pós-verdades, seus fatos alternativos, atoardas e até os mais hediondos pensamentos. No bar até ingresia é levada a sério. Alguns confessam fraquezas, outros mostram feridas, vidas são abertas na frente de todos.

Disse o Maranhão, outro dia, depois da terceira dose:

— Eu não aguento mais receber mensagens edificantes pelo telefone. De repente, todo mundo tem uma mensagem de paz, de amor, de amizade; uma declaração superior de fé no ser humano, de esperança e de religiosidade, como se fosse um momento de redenção coletiva. Continuamos a fazer as mesmas coisas condenáveis de sempre, mas temos que nos mostrar civilizados e compreensíveis. Tenho inveja do Trump: ficou difícil para ele no trabalho, foi só despejar um punhado de bombas na Síria, que ele recuperou o poder que estava escorregando pelos dedos.

Descontada a análise política, evidentemente ele estava de astral baixo, porque o assunto surgiu de repente, já elaborado, e sem que houvesse qualquer incentivo ou encaminhamento. O assunto anterior era uma briga entre velhos camaradas —  bem velhos, inclusive na idade —  porque um queria ser melhor, como diz aquele samba do Paulinho da Viola. Foi bom porque quebrou um assunto desagradável no nascedouro.

Mas o Maranhão tem razão. Quem participa de um grupo que seja no tal whatsApp começa a ver logo cedo uma profusão de mensagens de bom dia em todos os formatos. No meio da manhã, frases edificantes, exemplos de grandes pensadores, aforismos; ao meio-dia, lições de vida, conselhos, injeções de ânimo. À tarde, gotas de otimismo, pílulas de sabedoria, mais exemplos. Vai até acabar a bateria.

Não tenho notícia de que alguém melhorou por isso. O telefone pode ter autoajuda, mas quem segura o aparelho são as pessoas de sempre. Prefiro a mesa do bar.


Tags: terapia bar

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