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Crônica da semana: Sabor de ouvir dizer

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Paulo Pestana Publicação:12/05/2017 06:00
Houve tempo em que era preciso espremer os olhos para ler em qual fábrica era produzida a cerveja que havia sido colocada sobre a mesa do bar. E havia realmente uma diferença de sabor por causa da água usada na mistura; a Antárctica de Pirapora e a Brahma da serra fluminense eram as mais prestigiadas.
 
não existe mais isso; em parte porque não conseguimos mais enxergar as letrinhas impressas na parte enrugada da tampinha; mais ainda por causa do processo de tratamento da água, que agora tem as mesmas características, independentemente da geografia.
 
Mas eis que atingimos um novo patamar de especialização. Dia desses ia eu beliscando tremoços para acompanhar o chopinho, quando chega um jovem ainda com penugens no lugar do bigode, encosta no balcão e pede uma cerveja. O bodegueiro pergunta qual.
 
Não devia. O rapaz começou a dizer que queria uma cerveja de verdade, não uma dessas que tem milho e arroz na receita. Fez cara de sabido e arrematou: “Eu gostava de beber a Original, mas aí descobri que ela leva cereais não maltados na fórmula. Parei. Agora só bebo puro malte”. E pediu uma Heineken, com aquele sabor de flor do campo.
 
Não costumo meter o bedelho em conversa alheia; não é de bom tom. Fiz cara de quem não estava escutando mas apurei o ouvido quando o bodegueiro perguntou: “Mas você não gosta mais da Original?”. Resposta rápida: “Gosto. Mas ela tem milho”.
 
Então é assim: o milho sempre esteve lá, o sujeito gostava do sabor e só mudou quando leu que a tal cerveja não seguia a Lei da Pureza que, como todo cervejeiro sabe, botou ordem na produção bávara há 500 anos, antes por motivos econômicos do que de paladar. Os duques decretaram que cerveja só poderia ter água, lúpulo e cevada.
 
Quem bebe pinga não tem esse problema. Boa parte dos rótulos artesanais usa o milho como fermentador e ninguém viu pinguço cacarejando.
 
Mas o grave é que o rapaz não está sozinho. Me disse o bodegueiro que, depois que a história começou a circular pelas minas de sabedoria que são as redes sociais, muita gente trocou o rótulo, repetindo sempre a mesma história. Talvez não saibam que as cervejas que saboreavam também devem gosto e leveza característicos de uma pilsen ao milho e ao arroz.
 
Antigamente, o paladar mudava na proporção que se bebia determinada bebida — nos tempos de dureza, o Old Eight era sinônimo de uísque — hoje perde até para conhaque de alcatrão; houve tempo em que os vinhos brancos Zaringher e Liebfraumilch, com suas garrafas coloridas, estavam nas mesas mais finas — hoje não há nem quem pague pelo casco. E há quem lembre que a tradução de um bom tinto era o português Periquita.
 
Hoje em dia, mais que o sabor, vale o que se ouve falar. Na busca por individualidade, as pessoas abraçam a tolice coletiva, repetindo teorias, ainda que elas desmintam as próprias certezas e sensações. E a manada segue.  
 
Eu ainda acho que cerveja boa tem milho.





  

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