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Crônica da semana: No vai-da-valsa

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Paulo Pestana Publicação:19/05/2017 06:00
Ninguém mais quer saber de valsas. Nem as debutantes. E olha que, quando chegou ao Brasil, trazida pela corte portuguesa em 1808, fez um sucesso danado. Era tida como música safadinha —  ao contrário das polonaises e minuetos, permitia que os casais ficassem entrelaçados, a poucos centímetros um do outro. Imagine a excitação.

Nos salões ingleses, onde chegou em 1816, houve escândalo: o vetusto The Times, em editorial, a chamou de “dança estrangeira indecente”. Mas, no Brasil, o gênero foi bem recebido e, mais tarde, de Villa-Lobos a Pixinguinha, foi formado um imenso catálogo de valsas brasileiras.
 
Sem a opulência da música vienense, por décadas, a valsa foi presença garantida nas maiores vozes brasileiras. Só Francisco Alves — digam o que disserem, o maior cantor brasileiro —  gravou 124 valsas. Só perde para o número de sambas (383) e de marchas (166) que ele registrou em discos. Até recentemente, compositores como Chico Buarque ainda pelejavam no ritmo terciário, mas o tempo das valsas ficou para trás.
 
Eis que chegou aos meus ouvidos um disco contendo composições de João Tomé, mineiro que, no tempo dos pioneiros, se transferiu para Brasília, onde fez carreira no rádio, na tevê e nos bailes. A filha, Dolores Tomé, reconhecida flautista, liderou a gravação de alguns dos choros e valsas que o pai deixou entre suas mais de 600 composições.
 
Reuniu um time de bambas —  Joel Nascimento, Zé da Velha, Silvério Pontes, Hamilton Holanda, Rogério Caetano — e gravou 17 temas. Choros como Marangone e Piquenique são deliciosos, buliçosos, com melodias provocantes, cheias de soluções angulosas e surpreendentes; mas são as valsas que mostram toda a categoria do compositor.
 
A valsa brasileira tem sotaque próprio; herdou pouco além do compasso 3/4. João Tomé consegue traduzir esse jeitinho verde e amarelo de valsear, em que o compositor se comporta muito mais como quem é levado pelo ritmo do que alguém que impõe os passos. É o vai-da- valsa feito com a sabedoria de quem se deixa levar, mas só pelos caminhos que quer ir.
 
Amor de mãe, primeira composição de João Tomé — quando tinha 16 anos de idade —  e Gratidão, de 1943, são as primeiras valsas do disco. Com estruturas ricas e variações melódicas, oferecem amplo espaço para os instrumentistas.
 
Mas o leque se abre definitivamente em Alcionina (1949), ainda mais a partir do arranjo de Sidnei Maia, em que duas flautas (DoloresTomé e Beth Ernest-Dias) conversam com o violoncelo de Guerra Vicente e o violão de Augusto 7 Cordas.
 
João Tomé é um dos construtores da identidade musical de Brasília. Cego de nascença, desenvolveu um método de violão para deficientes visuais, trabalho que continua com Dolores —  hoje morando em Portugal —  que, com o irmão, Ismael, registrou as partituras das músicas do pai em braile. Chegou a Brasília em 1960, foi um dos fundadores da Escola de Música e permaneceu na cidade até morrer, em 1971. As valsas de João Tomé são o registro de um Brasil mais rico, mais sensível e mais inteligente. Um país que precisa ser recuperado.

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