Brasília-DF,
23/ABR/2024

Crônica da semana: Os párias no botequim

'Não se respeita nem doença. Ao ficar com o rosto vermelho ninguém vai pensar em urticária ou sol: a culpa é da pinga'

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Paulo Pestana Publicação:30/06/2017 06:00Atualização:29/06/2017 17:13
Dia desses, levei uma bronca de uma leitora que não gostou de ler sobre a vida nos botecos, tema recorrente por aqui. Disse ela que aquele texto era uma péssima influência, quase uma apologia à vida desregrada, que os personagens eram deprimentes, cancros sociais, algo que o valha — ou seja, fui esculhambado.

Era uma altercação virtual, por correio eletrônico, mas a moça não economizou nas críticas. Disse que o álcool era um perigo, humilhação de muitas famílias, que o ambiente dos bares é propício a marginais, que aquelas linhas podiam levar pessoas para o insidioso caminho da desgraça. Pediu que eu não publicasse o nome dela e que eu também ficasse anônimo: me passou o telefone do AA, numa indicação nada sutil de que eu devia me tratar.

Fiquei pensando em J.D. Salinger, autor de O apanhador nos campos de centeio, narrativa sobre a alienação adolescente, depois que o assassino de John Lennon foi pego lendo um exemplar; pensei no próprio Lennon que, com Paul McCartney, escreveu Helter Skelter, canção que teria levado Charles Manson a matar a atriz Sharon Tate; pensei na depressão de Santos Dumont ao descobrir que os aviões seriam usados como arma de guerra.

Seria eu uma dessas más influências que minha mãe tanto recomendou que evitasse? Nem bebo tanto assim, não acho o álcool glamouroso ou inspirador como pessoas muito mais talentosas. Raymond Chandler disse: “O álcool é como o amor. O primeiro beijo é mágico, o segundo é íntimo, o terceiro é rotina. Depois dele, você tira as roupas da moça”.

Jack Kerouac, farrista reconhecido, era ainda mais explícito: “Quanto mais velho eu fico, mais bêbado eu me torno. Por quê? Porque eu gosto do êxtase da mente”. Ou Hunter S. Thompson, autor de Medo e delírio em Las Vegas: “Odeio recomendar drogas, álcool, violência ou insanidade para qualquer um, mas isso tudo sempre funcionou comigo”.

A vida de quem bebe não anda fácil —  mesmo daqueles que não exageram, trabalham, vão à missa e não são políticos. Antigamente, a gente ouvia o locutor no rádio: “Deu duro? Tome um Dreher”. Hoje, é só sentar num bar e pegar um copo lagoinha para virar inimigo público; olhado com desconfiança, não se pode cometer um deslize sequer.

Se tropeçar na ponta do tapete, é por causa da manguaça; se ficar com sede e pedir um copo d’água, é ressaca; se chegar a um compromisso com um atraso de 10 minutos, a responsável será a danada.

Não se respeita nem doença. Ao ficar com o rosto vermelho ninguém vai pensar em urticária ou sol: a culpa é da pinga; se tremer, o diagnóstico não será o mal de Parkinson, mas excesso de cangibrina. Uma perseguição.

O bebedor de hoje é o fumante de ontem, quase um pária. Que a leitora me desculpe, mas vou continuar frequentando bares, bebendo — com moderação — não para espantar a tristeza, mas para abraçar a alegria, não para esquecer infortúnios, mas para celebrar amigos. E vou brindar à saúde dela.

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