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Crônica da semana: Memórias da peixaria

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Paulo Pestana Publicação:07/07/2017 06:00Atualização:06/07/2017 13:08
Peixe é o bicho mais silencioso do mundo; ganha de preguiça e até de lesma. Quando morto e congelado, o peixe fica ainda mais quietinho. Ainda assim, uma das primeiras vítimas da Lei do Silêncio em Brasília não foi um boteco barulhento, com música infernal e clientes acostumados a ganhar qualquer discussão do grito: foi uma peixaria.

Graças à ação —  e principalmente à má vontade —  de fiscais da administração pública, a Peixaria do Deraldo, na 216 Norte, foi fechada. Não é notícia de hoje: a ocorrência faz muitos anos; mas é uma didática maneira de mostrar que a intransigência está arraigada há tempos entre nós. Embora também mostre que a persistência é uma qualidade dos músicos.

Eis que, no último sábado, remanescentes daquela época se reuniram para lembrar — com alegria —  da velha sede de encontros musicais e fechar —  com pesar —  mais um bar. O Divino Cerrado, da 113 Norte, e que serviu de local para o reencontro, deixou de funcionar assim que a festa acabou. Deve ser o tal ciclo da vida que os livros de biologia registram.

A peixaria morreu depois que o pessoal que confunde música com barulho e que gostaria de fazer da cidade um imenso Campo da Esperança protestou. Depois de muitas notificações, ameaças e multas, Deraldo achou melhor baixar as portas. Para sempre.

E os sábados nunca mais foram os mesmos. A peixaria deixou saudade —  menos por causa dos pescados que abasteciam as quadras vizinhas e mais por causa da música que atraía gente de toda a cidade e músicos de todos os estilos.

A festa do reencontro foi grande, teve direito até a filmagens e entrevistas gravadas com antigos frequentadores e que devem ser transformadas em um documentário com impressões sobre a peixaria. Ficou um gostinho de quero mais: outras celebrações virão.

Deraldo esteve lá, agora auxiliado por uma bengala, revendo a clientela mais barulhenta e renitente que já teve. E que ouvia semanalmente o apelo do proprietário, que queria descanso depois da lida: “Vocês não têm casa, não?”, perguntava.

A peixaria virou roda de música por acaso. O pessoal foi se chegando —  no início era um violão, uma cantoria; a cada semana aumentava a frequência e com o tempo transformou-se num ponto obrigatório para qualquer um que gostasse de música.

No auge, ganhou até um samba-homenagem, sempre cantado —  “cachaça boa e surubim/ E a peixaria virou um grande botequim”, dizia o refrão.

A peixaria se foi, mas há resistência. A roda renasceu graças ao saudoso mecânico e bandolinista Coqueiro (Dionísio Della Penna) n’O Grao, boteco que fica no último comércio do canteiro central do Lago Norte. E lá está até hoje.

É ali, sempre nos fins de tarde de domingo, que Sanson Alhadef continua cantando seu imenso repertório, dividindo a mesa com outros, como ele, veteranos da peixaria —  Walcir Tavares, Murilo Grossi, Lício da Flauta —  e com músicos que se integraram mais recentemente ou chegam na hora, mantendo viva a chama da música de rua. Com a vantagem de  que agora não tem peixe.

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