Crônica da semana: Valentes à mesa
Paulo Pestana
Publicação:15/09/2017 06:03
O estômago do sertanejo é, antes de tudo, forte. Importadas ou não, as pesadas iguarias do sertão requerem a valentia de um cangaceiro, mas a recompensa é digna de qualquer sinhô ou coronel. É o caso do sarapatel. Há quem vire o rostinho e faça careta com a simples menção da iguaria: não sabe o que estão perdendo.
o cheiro forte incomoda a rapaziada criada pela vovó mas, se preparado com cuidado, o prato começa a ser degustado exatamente no destampar da panela. O aspecto também afasta os mais sensíveis, embora não seja mais feio ou mais bonito do que uma feijoada, por exemplo. O fato é que fritos, depois cozidos e refogados, os miúdos ganham nobreza.
O sarapatel é um filhote do sarrabulho, que os portugueses exportaram para as colônias. Dentro da panela há coração, pulmão, traqueia, fígado, rim, bucho, tripas e toucinho — dito assim, pode assustar, mas eles são cortadinhos em pedaços pequenos para facilitar a mistura com cebola, alho, salsa e o que mais o cozinheiro tiver na despensa.
Virou prato típico do nordeste brasileiro, com algumas diferenças estaduais: em Pernambuco, por exemplo, é feito só com carne suína e temperado com hortelã; no Ceará é temperado com folhas de louro, como a feijoada. No Piauí também tem sarapatel de porco, mas é mais comum encontrar o prato feito com miúdos de carneiro ou bode.
O sarapatel é um grande companheiro — não desses que ficam dedurando uns aos outros, mas daqueles leais — para uma cerveja pilsen gelada, mas pede uma abrideira, de preferência branca. Não é petisco, embora também seja servido em porções menores, para acompanhar as preliminares. O sabor é forte e marcante; pede uma pimentinha para calibrar.
A formação de Brasília, que deve boa parte de sua história aos nordestinos, autoriza a cidade a ter sarapatel de primeira. E por toda parte: na Vila Planalto, Dona Graça serve uma porção farta com arroz, feijão, farofa e salada; é a mesma guarnição do restaurante do Campos, no Mercado do Núcleo Bandeirante, outro ponto excelente de comida nordestina. Há pequenas diferenças nos condimentos usados, mas ambos são memoráveis.
Entendo lhufas de culinária, não acompanho os críticos gastronômicos e nem vejo o MasterChef, mas a minha preferência vai para o sarapatel do Silvio Ronaldo, que é cearense de Boa Viagem, já trabalhou com pratos finos da culinária internacional, mas capricha quando faz as coisas da terra. No sarapatel, usa apenas as partes mais — digamos — nobres dos miúdos do porco (dispensa o aparelho respiratório).
Não chega a ser um sarapatel leve (ou light, como dizemos em português moderno). Aliás, nada no restaurante dele, Silvio’s, que fica na 114 Norte, é leve; não é lugar para economizar nas calorias. Ali, o sarapatel é muito limpo, não há cheiro desagradável e nem pelanca.
O sarapatel não foi criado para assombrar ninguém. Sua origem é a pobreza — no norte de Portugal, assim como no Nordeste brasileiro, não se jogava nada fora —, mas isso ficou no passado. Agora ele tem status de iguaria.