Crônica da semana: Outros tempos
Paulo Pestana
Publicação:29/09/2017 06:01
Há alguns anos, nesta mesma época, os salões da cidade estariam tomados pelos bailes de formatura. Eram momentos de gala, prolongados até o fim de dezembro, numa celebração que alcançava toda a cidade, com ingresso disputado a tapa. Havia também bailes de debutantes, mais fechados, mas igualmente procurados.
Esses pequenos capítulos pertencem a um mundo que não existe mais; pelo menos não com a mesma intensidade. Brasília cresceu e algumas tradições de sua jovem história encolheram, tirando de cena uma noção de sociedade além das aparências, que ajuda a cidade a encontrar sua personalidade coletiva. De quebra, sumiram personagens.
Semana passada Betão completaria 69 anos. Quase ninguém sabia que ele se chamava Antônio Roberto Placidino, embora fosse uma figura conhecida e querida, até porque faz parte da memória afetiva de formandos, casais, aniversariantes ou simples convidados nas centenas de vezes em que se apresentou cantando. Betão era músico.
Embora atuasse primordialmente em bailes e bares, cantando músicas gravadas por outras vozes, era admirado. Voz potente, suingue contagiante, sorriso aberto e um jeito de fazer com que qualquer canção recebesse um sopro de novidade quando interpretada por ele eram algumas características que faziam com que ele fosse reconhecido por músicos de todos os estilos, incluindo o pessoal do chorinho.
Betão chegou a Brasília trazido por um dos pioneiros dos bailes, o saxofonista Raulino, que vive hoje em Anápolis. Líder do conjunto Raulino & Cia, ele se desentendeu com o então cantor e tecladista Jessé — mais tarde um sucesso nacional com a música Porto Solidão — e foi buscar Betão em Mirassol, interior paulista. Nunca mais deixou Brasília, onde ganhou o nome artístico de Beto Gil, cortesia do jornalista J. Caribé.
Ficou 14 anos com a Banda do Sol do maestro Zuza, cantou com a Joy Band e muitas outras formações. Nos últimos anos, ele vinha se apresentando principalmente em festas de casamento com o grupo Toccata, da violinista Kátia Pinheiro.
Foi ela quem encontrou Betão morto no pequeno quarto que ocupava, nos fundos de uma casa em Taguatinga, onde morava desde que havia se separado. O corpo estava lá há pelo menos cinco dias, segundo o legista e Kátia só o encontrou porque tentava contratá-lo para mais um casamento.
Betão não vivia o glamour que testemunhara em tantas festas; também não carregava a alegria e o descompromisso que via nos convidados, embora continuasse com a mesma e expansiva simpatia de sempre. Mas só era feliz no palco, na música. Contudo, não se lamentava e tinha sempre alguns amigos a quem recorrer nas horas de aperto. Mas morreu só.
Passou a vida fazendo a trilha sonora de romances, imiscuindo-se na história de casais, dando alma à cidade que escolheu para viver. A voz grave que tratava as canções com suavidade certamente ainda ecoa pelos caminhos da memória de tanta gente. Pena que não tenham sido registradas gravações — exceto eventuais filmes de casamentos — com a voz e personalidade. Esses músicos de baile não têm ideia da importância que eles têm na vida das pessoas.