Crônica da semana: Gênios enterrados
Paulo Pestana
Publicação:15/12/2017 06:00
Zé Damata estava no cemitério. O Campo da Esperança não é o melhor lugar do mundo para esbarrar com esse cangaceiro cultural, este Corisco do cinema, responsável pela formação cinéfila de mais de uma geração de brasilienses como programador de cinema da Cultura Inglesa e, depois, como piloto do Cinema Voador. Foi ele quem tirou o celuloide da salinha escura e descobriu que o céu da cidade podia ser o teto ideal para a exibição de filmes.
consternado com o ambiente do velório, Zé Damata não tinha a efusividade natural e provavelmente atávica, recebida dos ancestrais. Estava quieto, como todos na capela, ainda chocado com a notícia da morte do amigo.
De repente, pôs-se a andar pelos gramados, entre as lápides baixas. Parava, apertava os olhos para ler os nomes e seguia em frente, balançando a cabeça. Um amigo chegou mais perto para saber o que estava acontecendo, quem sabe consolá-lo pelo sentimento externado em gestos e que o transtornava.
Era um sentimento ainda mais profundo que a perda recente; não cabia apenas no corpo inerte do homem que aprendemos a admirar. Olhando no fundo dos olhos do amigo, ele disse, quase cochichando: “Os gênios estão todos sob sete palmos. Não há mais ninguém”. Continuou balbuciando palavras, atropelando sílabas.
É preciso dizer que nosso doce cangaceiro sempre foi generoso ao distribuir adjetivo a quem admira ou admirou — também reserva alguns especiais aos obtusos, ajumentados e desafetos, mas essa é uma outra história. Ainda assim, o amigo não entendeu bem o que se passava ali.
Súbito, uma ira santa fez com que ele saísse apontando para alguns túmulos, dizendo: “Gênio! Este era um gênio!”. Para outro, reforçava o adjetivo: “Gênio da raça!” E continuou a redescobrir gênios presos nos jazigos e que certamente não esperavam aquela homenagem póstuma — algumas muito póstumas, pois estavam enterrados há mais de década.
É preciso dar razão ao baiano que se apaixonou pelo cinema depois de ver Johnny Weissmuller se pendurando em cipós e abraçado na macaca. Onde estão os agentes culturais da cidade? Quando Brasília ainda estava em formação, havia uma necessidade de superar o tédio e a poeira vermelha com um ambiente de provocação cultural; havia uma turma de agitadores que atuava por todo canto, fazia um barulho danado.
Não deixaram substitutos. A cultura oficializou-se, ganhou o vinco das repartições públicas e os agitadores — gênios ou não — estão sob sete palmos ou desistiram. Havia uma cultura genuinamente brasiliense criada por loucos mansos e alimentada por um público fiel que participava das ações e também fazia provocações.
Hoje, temos uma Lei do Silêncio que abafa os sons e os sonhos da cidade. O barulho dos carros na rua é mais alto que a música, a louvação dos crentes é bem mais barulhenta que a cena do teatro e não há mais poesia nos bares.
Zé Damata resiste, mais vivo que nunca. Continua acreditando na força do cinema e ainda está disposto a enfrentar moinhos que tomam a forma das novelas da tevê. Longe do cemitério.