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Crônica da semana: Goles de cultura

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Paulo Pestana Publicação:02/02/2018 06:00Atualização:01/02/2018 16:18
Muita gente encara o bar como lugar de perdição. Um antro. Neopentecostais enxergam capetas atentando simples mortais com os prazeres do álcool e dos petiscos —  incluindo o pecado venial da salsichinha na salmoura —  e senhoras perdem a linha quando veem maridos se divertindo num cenário que elas julgam impróprio.

Quem frequenta bar é um guerreiro cercado de inimigos por todos os lados, todos sedentos de sangue, incomodados com a liberdade do ambiente, que só acaba quando se sente os pés molhados pela água com sabão que anuncia mais um fim de expediente. Esses inimigos são pessoas que nem desconfiam o que pode acontecer naquele lugar.
Há debates, há troca de informações, há mudança de opiniões. O bar é um lugar de aproximação, um ponto de encontros, aleatórios ou não, que expõe a alma das pessoas e, por extensão, da cidade. Lá se fala de (quase) tudo: a única censura é a razão; mas há espaço para todo tipo de opinião, com muito mais tolerância do que a gente vê na covardia escondida em avatares virtuais. Disputas viram apostas na forma de cervejas usufruídas por todos, seja qual for o resultado da contenda.
 
Mas há principalmente o inusitado: onde mais, numa roda de choro e samba, se encontrariam dois maestros renomados —  um deles inclusive trocando a vetusta batuta por um prosaico pandeiro? E onde mais poderíamos esbarrar em dois especialistas na obra de Augusto dos Anjos, analisando e declamando a obra do poeta paraibano.
Foi o que aconteceu recentemente. O primeiro encontro, absolutamente casual, aconteceu na roda de músicos do Grao, que acontece em todas as noites de domingo, e que na ocasião recebeu duas participações especiais: o maestro coralista Salazar e o maestro Fernando Machado.
 
A mesa é de amadores, formada por aposentados, servidores públicos, professores, analistas de sistema, que resolvem sacudir o pó dos instrumentos e fazer música improvisada. Pois os dois se juntaram aos comuns, esqueceram os títulos e arrepiaram, fazendo com que os músicos habituais aplaudissem as habilidades dos eruditos.
 
Na outra ponta, a poesia. Um paraibano e um mineiro se encontram pela primeira vez e, depois de algum tempo de conversa solta, descobrem a mútua paixão por Augusto dos Anjos. O doutor Bosco não apenas declama os poemas integralmente, mas contextualiza cada um deles, revelando os momentos e os motivos da inspiração, iluminando nossa ignorância diante do simbolismo dos versos.
 
O mineiro Coutinho retrucava com outro poema e ainda mostrou uma obra de lavra própria, influenciada pelo grande poeta. No final, recitam —  como jogral —  os Versos íntimos:

“Toma um fósforo, acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro.
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa ainda pena a tua chaga
Apedreja essa mão vil que te afaga.
Escarra nessa boca que te beija!”

Da próxima vez que alguém me recriminar por ir ao botequim, vou poder olhar de cima para baixo e dizer: eu perdoo vossa ignorância, mas vou beber, em busca de luz naquele templo de sabedoria.

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