Crônica da semana: Mordida na bochecha
As histórias da carochinha bem que tentaram aliviar contando aventuras como a do porquinho Prático e seus dois irmãos preguiçosos, mas o suíno continua sem despertar grandes simpatias. Ninguém quer criar um porquinho de estimação no apartamento e deixá-lo subir no sofá para ganhar um cafuné.
Sujo, obeso, violento, untuoso, mal-educado e barulhento, o porco é a imagem do pior que se pode imaginar. Menos quando o assunto é comida; exceção feita às restrições religiosas, é — com o perdão do trocadilho — um prato cheio.
Bisteca, linguiça, lombo, suã, copa, pernil, toucinho, joelho são alguns dos cortes mais tradicionais e que rendem receitas suficientes para muitos volumes. Do porco, só não se aproveita o grunhido — e, ainda assim, já tem espírito-de-porco que o usa como toque de telefone.
Em Portugal, desde antanho, a Matança do Porco é solenidade carregada de tradição. Acontecia no inverno, quando não havia mais lavoura e ficava mais fácil conservar a carne; e, na feitura da broa que integra o ritual, os participantes ainda ganhavam uma simpatia: “Deus te alevede e Deus te acrescente. Deus te livre da má gente”. Daí, matavam o animal. Os festivais acontecem até hoje.
No interior mineiro costuma-se dizer que é possível saber o tamanho da festa pelo cuinchar dos porcos. Eles reagem barulhentamente à facada fatal, normalmente sob a pata dianteira esquerda, direto no coração. É cruel, mas já virou música, uma bela suíte de Wagner Tiso, gravada pelo Som Imaginário (a guitarra de Frederiko faz o lamento do porco).
Mas a culinária não trabalha com sons que não venham das caçarolas. Luiz Trigo já mostrou que sabe mexer com carne de porco; professor universitário de gastronomia, escolheu o Lago Norte para mostrar que a teoria, na prática, é mais saborosa. Criou o Le Birosque, na Quituart, onde faz a melhor porchetta da cidade, que não deve nada a nenhuma outra.
O preparo é cuidadoso e demorado. Carnes ficam marinando por um dia, recebem mais temperos e são envoltas na pança do porco, como uma grande linguiça. Oito horas de forno e uso de maçarico para pururucar a pele finalizam. É servido com polenta e o prato já está consagrado, como refeição ou como petisco.
Agora, Trigo conseguiu realizar um velho projeto: servir bochecha de porco cozida. O corte sempre foi menosprezado no Brasil; no máximo era moído e virava salsicha, como outras carnes menos nobres. Em Portugal é diferente e tem estirpe, é servido de diversas formas — ao vinho, molho ferrugem, com migas de tomate etc.
A consistência é parecida com a da língua, mas ainda mais leve e Trigo serve com angu. É uma bochecha digna de beijos e mordidas.
P.S.: Semana passada, Melinha, a moça que cuida dos quitutes do bar do Tião, foi chamada de Melina — o copidesque achou que tinha um agá a mais. Ela não gosta do nome, Amélia, por causa das piadas óbvias e machistas, mas gosta de Melinha. Feita a correção, ela já pode mandar o texto para a mãe, no Ceará.