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Crônica da semana: Mordida na bochecha

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Paulo Pestana Publicação:23/02/2018 06:00Atualização:22/02/2018 18:21

As histórias da carochinha bem que tentaram aliviar contando aventuras como a do porquinho Prático e seus dois irmãos preguiçosos, mas o suíno continua sem despertar grandes simpatias. Ninguém quer criar um porquinho de estimação no apartamento e deixá-lo subir no sofá para ganhar um cafuné.

 

Sujo, obeso, violento, untuoso, mal-educado e barulhento, o porco é a imagem do pior que se pode imaginar. Menos quando o assunto é comida; exceção feita às restrições religiosas, é —  com o perdão do trocadilho —  um prato cheio.

 

Bisteca, linguiça, lombo, suã, copa, pernil, toucinho, joelho são alguns dos cortes mais tradicionais e que rendem receitas suficientes para muitos volumes. Do porco, só não se aproveita o grunhido —  e, ainda assim, já tem espírito-de-porco que o usa como toque de telefone.

 

Em Portugal, desde antanho, a Matança do Porco é solenidade carregada de tradição. Acontecia no inverno, quando não havia mais lavoura e ficava mais fácil conservar a carne; e, na feitura da broa que integra o ritual, os participantes ainda ganhavam uma simpatia: “Deus te alevede e Deus te acrescente. Deus te livre da má gente”. Daí, matavam o animal. Os festivais acontecem até hoje.

 

No interior mineiro costuma-se dizer que é possível saber o tamanho da festa pelo cuinchar dos porcos. Eles reagem barulhentamente à facada fatal, normalmente sob a pata dianteira esquerda, direto no coração. É cruel, mas já virou música, uma bela suíte de Wagner Tiso, gravada pelo Som Imaginário (a guitarra de Frederiko faz o lamento do porco).

 

Mas a culinária não trabalha com sons que não venham das caçarolas. Luiz Trigo já mostrou que sabe mexer com carne de porco; professor universitário de gastronomia, escolheu o Lago Norte para mostrar que a teoria, na prática, é mais saborosa. Criou o Le Birosque, na Quituart, onde faz a melhor porchetta da cidade, que não deve nada a nenhuma outra.

O preparo é cuidadoso e demorado. Carnes ficam marinando por um dia, recebem mais temperos e são envoltas na pança do porco, como uma grande linguiça. Oito horas de forno e uso de maçarico para pururucar a pele finalizam. É servido com polenta e o prato já está consagrado, como refeição ou como petisco.

 

Agora, Trigo conseguiu realizar um velho projeto: servir bochecha de porco cozida. O corte sempre foi menosprezado no Brasil; no máximo era moído e virava salsicha, como outras carnes menos nobres. Em Portugal é diferente e tem estirpe, é servido de diversas formas —  ao vinho, molho ferrugem, com migas de tomate etc.

 

A consistência é parecida com a da língua, mas ainda mais leve e Trigo serve com angu. É uma bochecha digna de beijos e mordidas.

 

P.S.:  Semana passada, Melinha, a moça que cuida dos quitutes do bar do Tião, foi chamada de Melina —  o copidesque achou que tinha um agá a mais. Ela não gosta do nome, Amélia, por causa das piadas óbvias e machistas, mas gosta de Melinha. Feita a correção, ela já pode mandar o texto para a mãe, no Ceará.

Tags: crônica

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