Crônica da semana: Telefone
Paulo Pestana
Publicação:06/07/2018 18:00
O telefone toca. É da loja de filtros de água informando que, mesmo passados apenas dois meses da última troca, está na hora de renovar o filtro vendido como eficaz por, pelo menos, seis meses. A mocinha diz que é para preservar a minha saúde. Agradeço a preocupação, declínio e desligo.
toca de novo. Desta vez é a operadora de tevê a cabo com uma oferta que, diz a moça, vai mudar minha vida. Eu não duvido, mas não quero pagar para ver, até porque horas antes outra operadora tinha oferecido tevê, internet e, quem sabe, até uma mariola, que pode não mudar a vida da gente, mas pelo menos adoça. Desligo.
Trim. O telefone de novo. Levanto mais uma vez e, desta vez, é um rapaz dizendo que, mesmo sem pedir, meu crédito já está aprovado e que ele está mandando o cartão — “o senhor pode me dar seu endereço?”. Vem cá, o sujeito nem sabe onde eu moro e me oferece dinheiro? Desconfio.
Não adianta muito eu dizer que a situação financeira está — como dizia o primo pobre da tevê — periclitante, porque ele contra-ataca: diz que o cartão vai facilitar minha vida. Resisto à solidariedade do banco e agradeço.
Na quarta vez que o telefone se manifesta — em menos de 20 minutos — eu tiro o fone do gancho e, antes mesmo de falar alô, ouço do outro lado que é um agente virtual de algum lugar que não me interessa, engatando palavras que eu não quero ouvir. Ainda mais vindas de um robô. Como era virtual, não tive constrangimento em bater o telefone na cara... bem, não tem cara, mas vale o desaforo.
Durante toda a manhã foi esse tormento. Ainda apareceu uma moça com sotaque paraibano tentando vender alguma coisa que eu não me lembro mais, um sujeito definitivamente goiano procurando me empurrar um plano de saúde que me garante o melhor tratamento e até alguém dizendo que eu não merecia ver a Copa na minha televisão — “o senhor merece mais”, alertou.
Fiquei pensando quando foi o início dessa praga. Antes disso, era a campainha, que anunciava um vendedor de enciclopédia ou de eletrodoméstico. Mas eles eram discretos, usavam terno, gravata e pediam licença.
Menos circunspectos eram o vendedor de biju (batendo a matraca sem dó) e o garrafeiro — que berrava pelas ruas, avisando que não aceitava casco sem o que ele chamava de coroa (aquela voltinha na ponta do gargalo, que sustenta a tampinha). Tinha ainda o amolador de faca com um apito meio irritante e o leiteiro, que se anunciava com um sino. Mas quem não estava interessado nem abria a porta.
Mas voltando às ligações, não tinha a menor ideia que havia tanta gente disposta a me ajudar no mundo. Fiquei tocado. E também não sabia que as coisas que eu consegui ter na vida eram cacarecos imprestáveis. Só que depois de um dia inteiro sem conseguir trabalhar direito cheguei à conclusão de que o único cacareco que tenho em casa é o telefone fixo.