Crônica da semana: Alegres cantos tristes
Paulo Pestana
Publicação:03/08/2018 06:00Atualização: 02/08/2018 17:59
Assunto morno em noite fria acaba em música. Havia apenas um violão na roda, mas quem queria apresentava — ou assassinava, dependendo das qualidades do intérprete — uma canção; e não se respeitava época, numa grande mistura de gêneros e ritmos. Mas os santos nos protegeram: não se chegou ao funk carioca.
é preciso dizer que, com a integração dos telefones inteligentes às rodas, começou a chatice dos autistas fascinados pelas redes sociais, mas parou aquela história de interromper a música na primeira estrofe, porque ninguém se lembrava o resto da letra. Daí, houve até quem se arriscasse a cantar Ontem ao luar, com a quilométrica e empolada letra de Catulo da Paixão Cearense sobre a bela melodia de Pedro Alcântara.
A cantoria gregária é uma tradição do nosso povo, vem desde os saraus, no caso das casas finas, e das batucadas que coloriam os terreiros. A roda de violão vai pelo mesmo caminho. Mas gringo acha esquisito. Ao lado, o britânico olhava a movimentação, curioso, até perguntar a um incauto: “Por que é que as pessoas se juntam para cantar tantas músicas tristes e com caras tão alegres?”
Difícil de responder. Canções para coro — mesmo improvisados como aquele — são alegres ou, no mínimo, celebrativas. O sofrimento é pessoal, intransferível, mas ainda assim pelo menos seis pessoas se aboletavam próximas à tela do telefone e soltavam a voz: “Ninguém me ama, ninguém me quer/ Ninguém me chama, de meu amor”... E ao final, todos se aplaudiam, dispensando eventuais macacas de auditório.
No livro Cantos e encantos, o pesquisador Renato Vivacqua, que sabe tudo e um pouco mais da música brasileira, escreveu um artigo sobre essa desdita musical, sob o título “Quero chorar, tenho lágrimas”. E ele começa justamente com Vicente Celestino.
Com poderosíssima voz de tenor, ele trouxe para a canção popular os dramas arrebatados das óperas, narrando as trágicas histórias do ébrio que viu nos amigos um bando de ladrões, do campônio que matou a própria mãe arrancando-lhe o coração e da mulher que deixa o túmulo para desancar o amante que provocou seu suicídio.
Vivacqua recolhe exemplos de outros autores, incluindo modas caipiras, mostrando que música e desilusão são companheiras de velha data.
O que o amigo britânico não entende é que a celebração da desgraça funciona como catarse — e todos cantam Naquela mesa, de Sérgio Bittencourt: “Eu não sabia que doía tanto, uma mesa num canto, uma casa, um jardim, se eu soubesse como dói a vida, essa dor, tão doída, não doía assim”. E riem, felizes.
Para ele, o mistério continuou; não consegue imaginar ingleses se divertindo ao cantar The scientist, do Coldplay, ou Tears and rain, de James Blunt, só usadas na preparação para cortar os pulsos. E ainda cantarolou versos de Hallelujah, de Leonard Cohen: “Amor não é uma marcha da vitória/ É uma fria e sofrida Aleluia”.
Mas só ele procurava explicação. O resto cantava: “Milhões de diabinhos martelando, o meu pobre coração agonizando, já não podia mais de tanta dor”. Era Lupicínio. Que alegria!
“Com a integração dos telefones inteligentes às rodas, começou a chatice dos autistas fascinados pelas redes sociais,mas parou aquela história de interromper a música na primeira estrofe, porque ninguém lembrava o resto da letra”