Brasília-DF,
26/ABR/2024

Crônica da semana: Estado intermediário

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Paulo Pestana Publicação:02/11/2018 06:00Atualização:01/11/2018 18:08
A culpa é daquele tantinho a mais. Uma dose, às vezes nem isso, que nos leva a cometer imprudências. A tarde corria tranquila naquele boteco de beira de estrada no povoado de Girassol, caminho para Pirenópolis. Aproveitamos a presença de um motorista abstêmio para desligar aquele freio que nos impede de passar dos limites.

A conversa era animada —  não era tempo de eleição, eventual rusga era só consequência do futebol, nada muito exaltado —  e a paz só era quebrada por um burro que insistia em zurrar bem na frente da varanda do bar. Um gaiato disse que ele estava gostando do nosso papo e queria participar; ninguém riu da infâmia.

Mas o importante aqui é a hora do clique, o exato momento em que o álcool faz girar o giglê que temos na cabeça e que regula a quantidade de combustível e ar — e que libera o fluxo de ridículo e insensatez. Não se trata de embriaguez, aquela exaltação nunca percebida pelo ébrio, mas do estado intermediário, uma espécie de purgatório, que deixa o sujeito soltinho, mas ainda o impede de ir contra a própria índole.

Quem gosta de uma cangibrina, de um martinizinho ou de uma pinguinha sabe bem o que é isso. Não dá para voar, mas também não dá para firmar o pé no chão. Mas dá para fazer besteira, como aconteceu naquela tarde, quando estávamos todos bonitos, cheios de graça e ricos (se bem que alguns ali eram mesmo ricos).

Depois de ganhar três vezes seguidas na mesa de sinuca de ficha, derrotando até o bamba do bar, meu amigo virou para o dono do botequim e bradou: “Essa mesa é minha, quanto custa?”. Como a falta de juízo era total, os outros apoiaram, aplaudindo e gritando palavras de suporte moral, ainda mais quando o botequeiro topou a venda.

Esperto, ele. A mesa estava caindo aos pedaços, com os pés descascados, o pano verde puído e as caçapas bambas. E tratou de botar preço. Não lembro o valor, mas certamente não era nenhum absurdo —  e olha que estava com o frete incluído —  porque o amigo pagou metade do combinado com o dinheiro que estava no bolso.

Tudo certo, um aperto de mão firmou o negócio e voltamos à mesa para brindar a aquisição sensacional; afinal, era uma mesa invicta, vencedora. Mais um pouco, voltamos para a pousada onde fomos recebidos com a frieza habitual das mulheres quando veem maridos tropicando na própria felicidade.

A breve estada acabou, voltamos todos para o batente e não se falou mais no assunto, nem mesmo no religioso encontro das quintas-feiras. Até que, duas semanas depois, o amigo bom de taco chegou com a novidade: uma caminhonete deixou a mesa de sinuca na casa dele. O rapaz que cuida do jardim botou a mesa na varanda.

Ele chegou a ficar animado, ia chamar os amigos, mas a mulher, de volta do trabalho e vendo a mesa naquele estado, decretou: ou você ou a mesa. E fuzilou: “Dois trastes em casa eu não aguento”.

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