Crônica da semana: Conversa santa
Paulo Pestana
Publicação:21/06/2019 06:00
Não sei se é o calor das fogueiras, o vapor do quentão ou a promessa dos santos da época. Mas algumas moças — até rapazes — ficam um pouco alteradas neste período do ano, em que se encontram imagens de Santo Antônio penduradas de cabeça para baixo e o mundo parece voltar séculos, quando começaram a atribuir casórios às ações divinas dele.
Não sei se é o calor das fogueiras, o vapor do quentão ou a promessa dos santos da época. Mas algumas moças – até rapazes – ficam um pouco alteradas neste período do ano, em que se encontram imagens de Santo Antônio penduradas de cabeça para baixo e o mundo parece voltar séculos, quando começaram a atribuir casórios às ações divinas dele.
Santo Antônio — que aliás foi batizado como Fernando — morreu há quase 800 anos. Foi um intelectual, deixou sermões importantes, lecionou em universidades da França e Itália, foi cercado de situações notáveis; diz-se que os peixes se aproximavam para ouvi-lo falar, que restaurou um pé amputado de um rapaz, comeu veneno e sobreviveu, além de ter provocado a aparição do próprio Menino Deus durante uma oração.
Orador de categoria, tem a língua — seca e escura — exposta até hoje na Capela das Relíquias, em Pádua. Também se envolveu em lutas políticas, a favor dos guelfos e dos endividados, que poderiam compensar o prejuízo de outro jeito.
Apesar de tudo o que fez em vida, virou ícone de moças desesperadas desde que correu a história de uma devota que, irritada por não conseguir um marido, arremessou uma imagem do santo pela janela. O objeto acabou acertando um homem que passava; a moça foi socorrê-lo e os dois acabaram se apaixonando e casando.
E há simpatias das mais diversas para conquistar as graças do santo casamenteiro, seja deixando a imagem de ponta-cabeça dentro de um copo cheio de água ou pinga; ou coloca-la no congelador até quem o amor apareça. Há que prefira deixar sete rosas brancas diante do santo, ou amarrar sete fitas coloridas. Também pode amarrar um cravo no talo de uma rosa com uma fita e dar sete (ou treze) nós.
Mas eu, que nem sonhava que alguém ainda pense em se casar, não imaginava que era possível chamar o santo ao bar e tomar uma com ele para conseguir um par. Sim, porque era um rapaz que sentou-se na mesa ao lado da diretoria — todos já sabem que qualquer boteco tem seu corpo dirigente, certo? — e tirou uma imagem de Santo Antônio do bolso. Nem grande, nem pequena; devia ter uns 10, 12 centímetros de altura.
Abriu um saco de jujubas, pediu duas doses de conhaque de gengibre, pôs o santo na frente dele e começou um pequeno colóquio — bem baixinho, para a irritação dos curiosos, nós, que éramos poucos bar naquela noite gelada. Não conseguimos saber se era uma oração, um lero ou um desabafo. Mas só podia ser um pedido para trazer de volta a pessoa amada, como a gente lê nesses cartazes afixados nos postes.
O rapaz merecia respeito e, nunca visto no recinto, não foi abordado. Não se interrompe conversa de pecador com santo, mesmo seja fora da igreja. Mas ficamos com uma dúvida para tirar com o padre: Santo Antônio também ajuda homem a se casar? Pelo sim pelo não a mesa já começou a encarar o santo como inimigo. Nossa conversa é com São Jorge.