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17/MAR/2024

Crônica da semana: O novo consultório

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Paulo Pestana Publicação:06/09/2019 06:00
Quando se fala em consultório médico, todo mundo logo pensa numa estoica sala de branco imaculado, uma mesinha e uma maca; no canto, fica um armário com estetoscópio, aquela lanterna de cabeça e outros equipamentos para exames iniciais. Foi em ambientes assim que Dr. João Bosco Marinho passou mais de 50 anos, desde que chegou a Brasília, vindo da Paraíba.

É conhecido pela fabulosa memória, que faz com que ele recite poemas, cordéis e até discursos de políticos que ele ouviu na adolescência, quando ainda sonhava ser advogado e tribuno — se imaginava fazendo a sustentação oral nos julgamentos de crimes famosos. Hoje está aposentado. Mas continua dando expediente diário, atendendo.

Só que o consultório é bem mais informal, no boteco. Dr. João Bosco não bebe mais — raramente toma uns golinhos de cerveja —, mas todo dia vai encontrar os amigos para botar a conversa em dia e, sempre que chega, alguém logo encosta para dizer que amanheceu com uma dorzinha aqui ou acolá. E ele não nega uma consulta — muitas vezes, o cacoete faz com que ele mesmo inicie a especulação. 

Naquela manhã de sábado, ele conversava animado quando chegou-se ao Nordeste; lá, disse o saudoso, ninguém se constipa, disse o camarada antes de tossir rouco. “Você está com essa tosse há quanto tempo?”, perguntou o doutor. E seguiu-se uma sequência de perguntas que dificilmente se ouve nos desinteressados e impessoais consultórios de hoje. 

Com o diagnóstico na cabeça, pediu ao atendente uma colher, ligou a lanterna do celular e levou o “paciente” para um lugar mais discreto. Com o cabo do talher baixou a língua do sujeito, iluminou a garganta e pediu: “Diga aaa”, esticando a vogal. 

Não demorou mais que alguns segundos para garantir que era uma faringite granulosa de sensibilidade. “O terror dos otorrinos”, completou, misterioso, enquanto relacionava os remédios que deveriam ser tomados.

Ninguém se surpreendeu. Todos ali já tinham visto o Dr. João Bosco em ação mais de uma vez, muitas vezes corrigindo diagnósticos de outros doutores, mudando medicação e até tempo de tratamento. 

Dr. João Bosco é um livre pensador. Gosta de registrar os aforismos, frases às vezes espirituosas, às vezes amargas, que lhe vêm à cabeça e que já renderam até um livro; também faz canções — uma delas teve como musa a tenista Maria Sharapova, “a mulher mais linda do mundo” — e arrisca umas poesias.

A música o acompanha desde a adolescência, quando frequentava o cabaré de Santa Luiza do Sabugi e fazia serenatas. Mas foi depois de ter o dedo praticamente decepado e, para inovar o tratamento recomendado pelo amigo médico que praticamente reimplantou-lhe o dedo, começou a tocar violão, ao invés de apertar bola de borracha.

Mas o consultório não fecha. 

O companheiro chegou acabrunhado, andando envergado, com dificuldade, pediu uma dose de pinga para ver se animava. Sentou-se ao lado do doutor demonstrando dor e reclamou da sina, em busca de diagnóstico. 

— Amigo, é melhor assim. Depois dos 60 se você acordar sem sentir dor alguma, é porque está morto.

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