Confira a entrevista com a atriz Marcelle Sampaio e o diretor Marcelo Morato
A dupla faz parte do elenco do espetáculo musas
Os relacionamentos amorosos mal sucedidos e o suicídio são os indícios óbvios que as duas artistas tem em comum. Além disso, o que aproxima Frida e Sylvia?
Marcelle Sampaio: Mais do que as relações amorosas, a Frida tinha um desejo de conseguir fazer com que ela, enquanto mulher, pudesse estar plena. Não só como amante do seu marido, mas como profissional, artista, mãe. A Sylvia também tinha isso muito forte. Ela tinha dois filhos, queria ser uma boa mãe, uma profissional reconhecida e um casamento tranquilo. Isso as aproxima, mas talvez seja um pouco óbvio dentro do universo feminino. São duas artistas conceituais. Nisso, elas se aproximam: uma maneira de não estar morta era estar criando. Para viver, elas tinham que pintar ou escrever. Se a inspiração faltasse, era como uma sentença de morte. Quando queriam enquadrar a Frida como uma pintora surrealista, ela não aceitava. Argumentava que pintava a própria realidade. A Sylvia também potencializa tudo que escreve, tanto as dores quanto as alegrias. Elas se aproximam pela distância. Os opostos a aproximam. Uma aguentou milhões de traições, até coma própria irmã. A outra não suportou um caso de infidelidade. Para Frida, a morte não é como a nossa morte católica, para os mexicanos, é motivo de celebração, consideram-na uma passagem, não um fim. Já Plath, americana, vivia em um país em que a morte é um estigma. Vários prédios não tem o andar treze, por exemplo…
Frida não gostava dos EUA, chamava os americanos de 'arrogantes de nascença' e sempre preferiu o México. Se fosse contemporânea de Sylvia, teriam uma relação de amizade?
Marcelle Sampaio: É um pouco difícil pensar isso. A Frida tem coisas que parecem óbvias, mas surpreendem. Eu diria que não, que ela não teria o menor saco para a Sylvia e seus grandes dramas, ia falar para ela acordar e viver a vida. Por outro lado, ela poderia me surpreender. O que li sobre ela mostra uma pessoa generosa com os amigos, e muito franca! Se ela tivesse essa oportunidade de aproximação, como a sensibilidade da Sylvia é muito forte e Frida gostava de pessoas inteligentes, poderiam manter uma amizade. Mas essa é pergunta muito difícil.
A peça Musas foi escrita em 1983 por Nestor Caballero, escritor venezuelano. Como foi sua adaptação a esse texto tão cultuado na América Latina?
Marcelo Morato: Tivemos que fazer uma pesquisa da obra de Frida e da Sylvia. Um trabalho voltado para entendimento e compreensão de algumas coisas no texto, mas não que isso tivesse sido aplicado em cena. A peça faz um levantamento de vários aspectos da vida e da obra das duas que são conhecidas. Constrói um mosaico de ações e pequenos trechos, flashes da vida delas. Às vezes, você pensa que não há conexão com a obra, e logo percebe-se que é um trecho de um diário da Frida ou um poema de Sylvia. Reunimos estilhaços da vida e da obra delas e criamos a situação ficcional de um encontro que nunca aconteceu, e o que poderia surgir desses encontros. Elas apresentam formas diferentes de lidar com isso.
A peça pode ser considerada biográfica?
Marcelo Morato: A peça reúne esses aspectos da vida pessoal e do trabalho de ambas, por meio de diálogos complementares. Frida é pulsante e erótica, Sylvia é deprimida. Vivia em um país frio, a outra em um lugar quente. O texto apresenta esses e outros contrastes inusitados e extrai desses encontros vários elementos que são interessantes para se pensar. O texto não conta histórias em ordem cronológica. Ele as coloca em território neutro e de encontro. Como ele não trabalha com cronologia, uma emoção crescente, às vezes uma cena forte e que necessita de muita concentração imediatamente é seguida por uma cena leve em as atrizes precisam mudar rapidamente e ter acesso a momentos alegres. Isso dá um tom contemporâneo ao espetáculo, porque ele não é uma peça biográfica. Nem poderia, porque não há como juntar em cena duas personagens que não se conheceram. Elas se tornam emblemas e comportamentos que foram reunidos no palco. A Frida é mais conhecida, a Sylvia um pouco menos, mas dá para perceber informações sobre como elas viveram, embora não seja uma peça em que você saia com um embasamento detalhado da vida e da obra de cada uma.
As duas atrizes tem o balé em comum. A dança entra, de alguma forma, na peça?
Marcelle Sampaio: Não diretamente. Para mim, a relação do movimento com o tempo e o espaço faz parte do meu estar no palco. Sou diretora de movimento. Mesmo que não tenha nada marcado, o corpo é sempre um caminho de entrada. Não tem uma relação das duas com a dança propriamente dita no trabalho. Temos questões que deixamos mais desenhadas, por conta da própria característica da personalidade delas que se expressa no corpo, porém sem uma ênfase nisso.
O texto sofreu alguma adaptação?
Marcelo Morato: Ele foi escrito na década de 80 e parte de um arquétipo de um personagem, de um tema, propondo reflexões e um diálogo com a nossa forma de lidar com a vida. É todo construído com cenas em que Frida e Sylvia falam sozinhas e em alguns momentos elas dialogam, mas sem invadir o território da outra. Não há contato físico direto, e sim uma percepção sensorial. Não fiz nenhuma adaptação no texto, apenas pequenos cortes, é normal acontecer. Não alteramos e nem enxertamos nada. O autor solicitava isso. Cortamos muito pouco. Isso geralmente acontece com textos clássicos, que possuem um domínio razoável. Aí sim pode-se mexer e brincar com ele, mudar a linguagem ou contar a história do ponto de vista de outro personagem. Mas fazer isso com dramaturgia contemporânea é complicado, porque o próprio dramaturgo realizou esse trabalho de caleidoscópio. É difícil mexer nesse material, porque o Nestor já o fez. Trabalhamos no sentido de compreender o significado dele, porque nem sempre era fácil perceber as cenas, para permitir que o trabalho da atrizes fizesse essa transição rápida de emoção.